Bohemian Rhapsody ou uma pequena silhueta de um homem

por Marcelo Seabra

Freddie Mercury foi o maior artista da música de todos os tempos. Juntando-se carisma, potência vocal, versatilidade, criatividade, presença de palco, talento para compor… Não existe um nome à altura. Bohemian Rhapsody (2018) é o longa que pretende contar um pouco da história desse ídolo que misteriosamente não havia ainda ganhado uma cinebiografia. Em meio a uma produção turbulenta, o projeto sofreu alguns baques. Mas, entre erros e acertos, o resultado é muito positivo e vai fazer muito marmanjo fã do Queen chorar como uma criança.

A ideia de levar a vida de Freddie ao Cinema estava sendo trabalhada há algum tempo. Sacha Baron Cohen, o Borat, ficou à frente do projeto até que “diferenças criativas” acabaram trazendo Rami Malek a bordo. O ator, que despontou com a série Mr. Robot, assumiu uma grande responsabilidade e sentiu o peso, como contou em diversas entrevistas. Com uma dentadura especial, que fazia sua arcada ficar pronunciada como a do cantor, Malek também buscou o figurino adequado e começou a entrar no personagem mesmo fora dos sets, para se ambientar. Tamanha dedicação é vista no longa. Malek encarna Freddie no nível de intérpretes como Val Kilmer (Jim Morrison) e Jamie Foxx (Ray Charles).

Além de um protagonista fantástico, o longa tem todo um elenco primoroso. Brian May (Gwilym Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello) devem ter ficado assustados ao verem suas contrapartes no palco – ao menos May ficou, já que externou esse sentimento a jornalistas. Em outros papéis, temos gente do nível de Tom Hollander (de Missão Impossível: Nação Secreta, 2015), Aidan Gillen (de Game of Thrones) e até uma rápida participação de Mike Myers, o eterno Wayne Campbell, que diz que “não vê jovens balançando a cabeça no carro ouvindo uma música de seis minutos” – em referência clara a Quanto Mais Idiota Melhor (Wayne’s World, 1992).

A trilha sonora, recheada de canções de Freddie e companhia, ganha o espectador logo de cara. Além de Queen, que era óbvio, ela traz faixas curiosas como uma do Smile, a banda anterior de May e Taylor, além de outras que marcaram época – como Super Freak, de Rick James. Ter Brian May (ao lado, as duas versões do guitarrista) como produtor executivo musical faz toda a diferença: além de ter acesso aos direitos das músicas, o filme usa áudios originais de shows, o que traz ainda mais veracidade. Conhecendo a banda, já sabemos que se trata de um grupo de pessoas muito criteriosas, e May os representa bem. Ele e Taylor entram também como produtores, além de Jim Beach, advogado e empresário deles (vivido na tela por Hollander).

A produção do longa, capitaneada por Bryan Singer, é primorosa em sua reconstituição de época. Singer, envolvido em um escândalo sob acusação de estupro de um menor, acabou alegando razões pessoais e se afastando, com o produtor Dexter Fletcher (de Voando Alto, 2015) assumindo a cadeira. O roteiro original de Peter Morgan, especialista na “Rainha” (de The Crown e A Rainha, 2006), acabou nas mãos de Anthony McCarten (de O Destino de Uma Nação, 2017), que mexeu o suficiente para ganhar o crédito. O roteiro, talvez, tenha sido a maior falha do filme. A cronologia dos fatos, como a composição de certas músicas e a realização de shows, não é respeitada e causa confusão nos mais atentos, provavelmente alterada para fins dramáticos. We Will Rock You, por exemplo, teria sido gravada nos idos da década de 80, quando na verdade é de 1977.

Ainda entre os problemas do roteiro está a necessidade de criar vilões, caso do assessor promovido a secretário particular/amante de Freddie (Allen Leech, de O Jogo da Imitação, 2014). O pai (Ace Bhatti), um rígido parsi zoroastriano, acaba bebendo um pouco nessa fonte, mesmo erro observado em Johnny e June (2005), sobre Johnny Cash. O início da carreira de Mercury e do Queen poderia ter sido melhor abordado, mostrando os percalços pelos quais passaram, os shows que abriram (para, por exemplo, Mott the Hoople) e outros desafios já como celebridades, como compor trilhas sonoras para filmes. É opção dos envolvidos simplificar essas partes.

No entanto, Bohemian Rhapsody se preocupa mais em focar na solidão que Freddie vivia mesmo cercado por milhares. E, aí, reside uma das maiores críticas que tem sido feita ao filme: a suposta suavização da homossexualidade do cantor. Muitos têm apontado o problema, que a questão da sexualidade é deixada de lado para obter uma censura mais leve e, assim, atingir maior público.

O que os detratores se esquecem é que Freddie mantinha sua vida pessoal para si. As duas décadas em que ele viveu mais intensamente, os anos 70 e 80, foram marcados por forte homofobia. A AIDS, quando ficou conhecida, era chamada de doença de gays. Talvez por tudo isso, ele tenha tentado manter as aparências. E sempre considerou como o amor de sua vida Mary Austin (Lucy Boynton, de Assassinato no Expresso Oriente, 2017 – acima), com quem morou por seis anos e seguiu como sua melhor amiga até o fim. Mesmo assim, o filme deixa claro, com olhares num primeiro momento e depois com uma conversa e até um beijo, que Freddie era gay e parecia lutar com isso antes de conseguir se aceitar.

Que o cantor viveu loucuras regadas a drogas e sexo, ninguém tem dúvida. Se Bohemian Rhapsody não entra a fundo nesse ponto, é questão de foco. A história de Freddie se confunde com a história da AIDS, e isso fica muito claro. O roteiro pode buscar saídas fáceis, com alguns diálogos expositivos e simplificações. Mas ver a banda se apresentando no Live Aid, frente a milhares de pessoas indo à loucura, com tudo reconstituído à perfeição, supera qualquer coisa. Muitos dirão que poderia ter sido um filme melhor. Mas, ainda assim, o resultado não vai sair tão cedo da cabeça de quem assistir. E, porque não, ficamos na expectativa de uma continuação: The Show Must Go On.

Eis o Queen original, em foto de 1977

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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