por Marcelo Seabra
A década de 80 produziu alguns símbolos fortes, que trazem lembranças a quem viveu nessa época, e um deles é o palhaço Bozo. O que muita gente não conhece é a história por trás da maquiagem e ela é contada no Cinema em Bingo – O Rei das Manhãs (2017), primeiro longa na direção do premiado montador Daniel Rezende. Por questões de direitos autorais, os nomes precisaram ser alterados, mas o resto parece ser bem factual.
Hoje pastor em uma igreja batista, Arlindo Barreto foi ator de pornochanchadas e buscava um trabalho tido como sério para provar seu talento. Ao saber que um produtor americano lançaria no Brasil uma franquia do palhaço Bozo, resolveu encarar o desafio. Nos Estados Unidos, a atração estava no ar há dez anos, e selecionavam quem viveria a figura por aqui. No filme, Barreto se torna Augusto Mendes, Bozo vira Bingo e algumas situações são alteradas para fins dramáticos. Mas, segundo o próprio Barreto contou ao jornal O Globo: “O que você viu é real”.
Além de uma história interessante, com texto do veterano Luiz Bolognesi, Bingo conta com um trunfo ainda maior: seu protagonista. Vladimir Brichta (de Real Beleza, 2015) novamente acerta no alvo, dando o tom adequado a seu personagem, sempre com muita energia e nos fazendo crer no que está sendo mostrado. Vemos claramente quando ele assume a persona do palhaço, que funciona quase com a mesma dinâmica de um super-herói. E a comparação não é a toa: Augusto não pode contar a ninguém que é Bingo, o contrato o proíbe. Ele é a maior atração da TV, batendo recordes e vencendo a concorrência, mas ninguém pode saber.
Uma tarefa que costuma ser ingrata é escolher um garoto que dê conta do recado, e o jovem Cauã Martins se mostra uma boa opção. Ele consegue evitar exageros ao viver o filho de Augusto, que vai sendo deixado de lado à medida em que o sucesso do pai aumenta e o ciclo de sexo e drogas vai se tornando mais louco. Três mulheres dividem a função de coadjuvante: Tainá Müller (de O Duelo, 2015) é a ex-mulher de Augusto; Ana Lúcia Torre (de Um Tio Quase Perfeito, 2017) é a mãe; e Leandra Leal (de O Rastro, 2017) vive a diretora do programa, uma religiosa linha dura que entra em embates constantes com o ator. Duas participações interessantes são as de Pedro Bial, como o responsável pela emissora rival, e o falecido Domingos Montagner, em casa como um palhaço de circo.
Uma participação curiosa é a de Emanuelle Araújo, que encarna a dançarina Gretchen (ambas acima). Com uma beleza que a verdadeira nunca teve, Araújo repete os trejeitos e gritinhos ao cantar e dançar o “clássico” oitentista Conga Conga Conga. A própria Gretchen ficou surpresa com a interpretação e elogiou a colega em vídeo divulgado pela assessoria da produção. E não ficou nem uma ponta de vergonha de ter apresentado esse número no meio de um bando de pré-adolescentes. Falando em música, há pérolas na trilha, tanto nacionais quanto de fora: de Titãs a Echo and the Bunnymen, passando por Dr. Silvana e Cia e Nena, com a sua 99 Red Ballons.
Além de Bolognesi, o longa conta com outros grandes talentos atrás das câmeras. Rezende, indicado ao Oscar pela montagem de Cidade de Deus (2002), se mostra um diretor que domina sua tarefa. Econômico e direto, ele conta a história sem firulas e evitando clichês. Afinal, dramas de superação pedem por eles, mas Rezende é forte. Lula Carvalho, que trabalhou com Rezende em Tropa de Elite (2007), faz outro belo trabalho de fotografia, explorando bem os cenários do programa, os cômodos e as ruas, além de um bom momento em uma praia.
É interessante ver, em Bingo, como as coisas funcionavam na TV nos anos 80. Enquanto um canal mostrava uma loirinha em trajes mínimos divertindo crianças, o outro usava um palhaço desbocado que não tinha pudores em fazer um menino passar vergonha no ar como uma forma de justiça com a própria câmera. Ou colocar uma dançarina pra rebolar no meio do palco. É como Augusto diz, em determinado momento: “O Brasil não é para iniciantes”.
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