Five Came Back mostra a importância do Cinema como arma de guerra

por Rodrigo “Piolho” Monteiro

Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos assistiam aos últimos anos da década de 1930 com apreensão, mas mantinham-se neutros ao conflito na Europa. “Não queremos nos envolver em guerras que não são nossas” era o sentimento geral da nação. Isso, no entanto, mudou em 07 de dezembro de 1941, quando caças japoneses atacaram a base naval de Pearl Harbor, no Havaí, que praticamente obrigou os americanos a entrarem na Segunda Guerra Mundial. Como convencer o povo americano de que a guerra era justa e deveria ser lutada? A resposta: combater fogo com fogo.

Se o Eixo (o grupo de países formado por Alemanha, Itália, Japão e nações menores) tinha Goebbels e toda a indústria cinematográfica nazista a seu favor, os Aliados, e, especialmente, os Estados Unidos, tinham alguns diretores dispostos a colaborar com o esforço de guerra da única forma que poderiam: fazendo filmes que mostrassem todo o seu horror e criassem uma mobilização da população americana para o conflito, aumentasse o moral das tropas e outras funções. O impacto que esse trabalho teve na vida dos diretores que se dispuseram a fazê-lo é o tema de Five Came Back, minissérie original do Netflix, baseada num livro de Mark Harris, que é uma pérola para qualquer um interessado tanto em Cinema quanto no maior conflito do século XX.

A definição clássica de propaganda diz que é “uma forma intencional e sistemática de persuasão com fins ideológicos, políticos ou comerciais, com a intenção de influenciar as emoções, atitudes, opiniões e ações de grupos de destinatários específicos, através da transmissão controlada de informação parcial (que pode ou não pode ser baseada em fatos), através de meios de comunicação de massas e diretos” (Fonte: Richard Alan Nelson, Glossário de Propaganda nos Estados Unidos, 1996). Na década de 1930, Joseph Goebbels, ministro de propaganda do partido nazista, fez uso, como poucos na História, da propaganda como um instrumento de guerra, na medida em que Hitler moldava seu sonho louco de transformar todo o planeta em um feudo alemão.

A então pungente indústria cinematográfica alemã (acima, O Triunfo da Vontade, de 1935) forneceu ao ministro todos os instrumentos para convencer a população do país da justeza da causa de seu führer e que a concretização de seu sonho poderia fazer a Alemanha retomar o status de potência mundial perdido graças à sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Pode parecer pouco, mas a manipulação de Goebbels através do Cinema e do rádio (a televisão ainda não existia) desempenhou um grande papel no que viria a ser a Segunda Guerra Mundial.

Five Came Back acompanha a trajetória de cinco diretores, então consagrados em Hollywood, que se dispuseram a colocar suas carreiras em pausa para prestarem serviços a seu país. Frank Capra, John Ford, William Wyler, John Huston e George Stevens passaram boa parte da guerra (a partir de 1941) fazendo filmes – curta-metragens, em sua maioria, para serem exibidos antes das atrações principais do cinema da época – e seu trabalho causou um grande impacto tanto dentro das forças armadas como no público americano em geral, quando era liberado (pelo menos dois de seus filmes acabaram sendo censurados pelo exército americano. There Be Light, de Stevens, veio a público apenas em 1981). A série explora tanto o trabalho do quinteto no front como também o impacto que isso teve em suas carreiras, especialmente após o fim da guerra. Stevens (abaixo), por exemplo, pode ser considerado um dos principais responsáveis pela condenação de diversos oficiais nazistas por crimes de guerra graças ao seu trabalho em Dachau, campo de concentração perto de Munique onde esteve e passou diversos dias fotografando e filmando tudo o que via.

Um aspecto interessante de Five Came Back é ver como as forças armadas americanas se preocupavam com o conteúdo dos filmes (documentários, ainda que alguns tenham utilizado trechos encenados) e como ele poderia direcionar a percepção do público americano em relação ao inimigo. Ao mesmo tempo em que havia um cuidado em mostrar que Hitler – e não os alemães em geral – era o inimigo a ser odiado, com os japoneses, a princípio, não havia esse cuidado. Outra coisa que chama a atenção na minissérie é a exibição de trechos desses documentários. As imagens colhidas por Stevens em Dachau podem ser particularmente chocantes para aqueles que nunca viram fotos ou documentários da época.

Também é legal ver como a guerra mudou esses homens e fez com que eles produzissem seus melhores trabalhos justamente no pós-guerra. Frank Capra lançou A Felicidade Não Se Compra (ao lado) em 1946 e o filme foi um fracasso na época, mas estourou na época da televisão e hoje é reprisado anualmente na época de Natal nos EUA; William Wyler ganhou dois Oscars durante a guerra, foi ferido em combate, perdeu grande parte de sua audição e fez sua obra-prima, Ben-Hur, em 1959; John Huston ganhou seu primeiro Oscar em 1949 por O Tesouro de Sierra Madre (1948); John Ford, também ferido em combate, fez diversos filmes marcantes pós 1945, tendo Rastros de Ódio (1956) entre eles. Mas nenhum deles foi tão impactado pela guerra como Stevens. Antes um diretor de comédias e filmes leves, George se tornou um excelente diretor dramático no pós-guerra. Um de seus principais filmes, Os Brutos Também Amam, teve trechos mostrados no recente Logan (2017), fazendo bons paralelos com a história do último longa do mutante canadense.

Além de trazer trechos dos filmes produzidos por cada um deles, entrevistas e depoimentos, Five Came Back tem narração de Meryl Streep (de A Dama de Ferro, 2011) e apresentação de cinco grandes diretores do cinema atual: Francis Ford Coppola (da trilogia O Poderoso Chefão), Guillermo del Toro (A Colina Escarlate, 2015), Paul Greengrass (Jason Bourne, 2016), Lawrence Kasdan (roteirista de O Despertar da Força, 2015) e Steven Spielberg (Cavalo de Guerra, 2011). A minissérie é dividida em três episódios, cada um com duração aproximada de 60 minutos. Como bônus, o Netflix também disponibilizou todos os filmes realizados por Capra & cia.

A narração é da inconfundível Meryl Streep

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • A arte é surpreendente, principalmente ao cinema. Parabéns pelo post!

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