Poetisa ganha cinebio Além das Palavras

por Marcelo Seabra

À primeira vista, seria muito difícil levar ao Cinema a vida de uma pessoa marcada muito mais por palavras e sentimentos que por acontecimentos. E essa é a missão que o diretor e roteirista Terence Davies encara em Além das Palavras (A Quiet Passion, 2016), longa que acompanha a vida de Emily Dickinson, tida como uma das mais proeminentes poetisas da língua inglesa. Sua fama de reclusa procede, como pode-se ver na tela, e conseguimos entender melhor alguns traços de sua personalidade.

O britânico Davies vem de uma elogiada carreira de filmes sensíveis e densos, construídos através de diálogos bem lapidados (como A Essência da Paixão e Amor Profundo). A diferença, aqui, é que o texto de Dickinson permeia as falas, como se ela tivesse ideias para seus poemas em situações cotidianas. Ou se testasse essas ideias com a família antes de escrever. Como a vida dela não foi marcada por grandes eventos, qualquer coisa ganha proporções maiores. Um casamento, morte ou nascimento é causador de reflexões e atritos e pode inspirá-la. Por isso, o título original, “Uma Paixão Silenciosa”, seria bem mais apropriado.

No papel principal, temos Cynthia Nixon, muito lembrada como a Miranda de Sex and the City. A atriz faz um ótimo trabalho nos dois extremos: quando tem muito texto para se expressar e quando não tem nenhum, contando apenas com suas expressões e movimentos. Nixon encarna bem o modo taciturno e o humor crítico e até irônico de Dickinson. Os duelos falados entre ela e a irmã (Jennifer Ehle, de The Fundamentals of Caring, 2016), ou mesmo com a amiga (Catherine Bailey, de The Crown), são de grande presença de espírito. As três, em diferentes níveis, têm em comum a sagacidade, a rapidez de pensamento e um certo pessimismo. Os diálogos com a tia Elizabeth (Annette Badlan) são impagáveis!

Desde o início, entendemos que a família Dickinson tem posses e seus filhos experimentaram os melhores estudos, seguindo o caminho dos pais. Emily, então vivida por Emma Bell (de The Walking Dead), não se encaixa num colégio de freiras e acaba voltando para casa. Esse é um ponto que o filme não deixa claro: se ela, mais velha, se recusa a ir à igreja, como se sente tão tocada pela pregação do Reverendo Wadsworth (Eric Loren)? Lendo a biografia da poetisa, encontramos pontos de discordância, já que ela teria conhecido Wadsworth em uma viagem.

O elenco de Além das Palavras, que ainda conta com Keith Carradine (das séries Dexter e Madam Secretary) e Joanna Bacon como os pais e Duncan Duff como o irmão de Emily, é o grande trunfo do filme. Sempre com um figurino perfeito, Nixon transmite muita segurança e os demais seguem num patamar próximo, o que valoriza muito o texto de Davies. O cenário é, basicamente, a casa da família, o que parece ser uma restrição orçamentária, e isso pode tornar as coisas um pouco enfadonhas. Mas as palavras devem manter o público alerta até o final.

Davies e Nixon lançaram o longa no Festival San Sebastian

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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