Mel Gibson volta à direção na guerra

por Marcelo Seabra

Dez anos após sua última investida no comando de um longa, Mel Gibson volta a atacar. Com vários problemas em sua vida pessoal, ele seguiu atuando e produzindo obras menores até decidir dirigir novamente, e o resultado é Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016). O projeto é baseado na história real de um soldado que se recusou a pegar em armas e foi à Segunda Guerra Mundial apenas com sua convicção e disposição. Com o trailer e a campanha de marketing, dá para saber exatamente o que acontece, mas ainda assim vale a pena acompanhar, tamanha é a competência dos envolvidos.

Gibson é brilhante tanto no drama quanto nas cenas de batalha, como já comprovamos no premiado Coração Valente (Braveheart, 1995), entre outros. É triste ver um artista completo como ele ser mais lembrado por ações estúpidas e afirmações preconceituosas. Mas a nova indicação ao Oscar como Melhor Diretor, uma das seis do filme, parece ser um sinal de que essas questões podem ter ficado para trás e a Academia está disposta a lhe dar mais uma chance. Outro que dá a volta por cima é o protagonista, Andrew Garfield, superando o fracasso da franquia do Homem-Aranha e os comentários negativos sobre seu trabalho. No mesmo ano em que trabalha com Martin Scorsese (em Silêncio, 2016), ele tem essa bela oportunidade com Gibson e é mais um dos lembrados no Oscar, além de outras várias instituições.

Segundo Desmond Doss, Jr., o pai resistia a ter a sua história contada em livro ou filme por temer imprecisões e alterações. Mas, de fato, era algo que merecia luz: o soldado Desmond Doss passou por muitas dificuldades até que o exército aceitasse sua ida para a guerra. Ele era o chamado objetor de consciência, alguém que se recusa a pegar em armas seja por princípios éticos, religiosos ou morais. Doss se alistou e solicitou ser enviado como médico, fazendo um treinamento básico. Mas, para o Exército, mesmo os médicos iam armados, revidando em caso de necessidade. Entrar no campo de batalha totalmente desarmado era algo impensável, e tentaram de toda forma fazê-lo desistir e voltar para casa. Doss, adventista do sétimo dia e filho de militar, via como natural sua vontade de servir o país.

Da década de 90 em diante, Doss baixou um pouco a guarda e foram feitos livros, programas de TV e até revistas em quadrinhos sobre ele. Em 2004, o documentário The Conscientious Objector chamou alguma atenção, e a obra ficcional já vinha sendo desenvolvida. Percebemos, no roteiro de Andrew Knight (de Promessas de Guerra, 2014) e Robert Schenkkan (da minissérie The Pacific, 2010), algumas inconsistências, mas nada que o desmereça. Os japoneses são demonizados, o que é compreensível na situação em que os soldados estavam. A batalha no cume da colina Hacksaw, que dá o nome original ao filme, não foi a única da qual Doss participou. Mas certamente foi a mais brutal e emocionante. E Gibson não poupa seu público, mostrando vísceras, sangue, membros decepados, explosões e tudo o mais que possa acontecer em uma guerra. Nada é gratuito e até os momentos mais dramáticos são bem equilibrados, evitando pieguismo ou sentimentalismo barato. Inclusive, na correta trilha sonora de Rupert Gregson-Williams (de A Lenda de Tarzan, 2016).

O elenco de Até o Último Homem é bem uniforme. É surpreendente ver Vince Vaughn (de True Detective) bem num papel sério, como um sargento. Os pais de Doss ficaram a cargo dos ótimos Hugo Weaving e Rachel Griffiths, a namorada é Teresa Palmer e o militar superior é Sam Worthington, com outros nomes menos lembrados – inclusive um filho de Mel, Milo Gibson. No aspecto técnico, o longa é igualmente impecável. A montagem ágil e inteligível de John Gilbert (de November Man, 2014), também indicada ao Oscar, aproveita o melhor da fotografia de Simon Duggan (de Warcraft, 2016). Outro elemento que ajuda é a reconstituição de época, com cenários, figurinos e maquiagens realistas que te levam para a década de 1940. Mesmo com 140 minutos, o filme é objetivo e não cansa.

O verdadeiro Desmond Doss recebe a Medalha de Honra do Presidente Truman

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • "ações estúpidas e afirmações preconceituosas". Parece que quem foi preconceituoso foi o senhor.

    • Prezado Sérgio, o mundo todo tomou conhecimento das brigas domésticas de Gibson, que deixaram a esposa dele bem machucada durante o divórcio. E também das afirmações preconceituosas contra judeus. O senhor não se lembra? Não a toa, a Academia o deixou na geladeira por 10 anos. Ele chegou a pedir desculpas publicamente. Abraço!

    • Infelizmente ele fez mesmo coisas estúpidas, registradas em áudio e pela polícia de lá. Não é especulação.

      Mas creio que este filme é um pedido de redenção. Ele é um cara talentoso, mas também é um homem com seus demônios contra os quais ele luta.

      Não foi coincidência ele pegar esta história do Doss.

      • Realmente, Ednardo, parece ter sido uma escolha bem calculada. Abraço!

  • Pelo que eu entendi do filme, ele não era "médico" (medical doctor, physician), mas "paramédico" (medic). Ele não tinha graduação em medicina, mas apenas treinamento para socorrer pessoas, que é o trabalho do paramédico. Segundo a Wikipedia, o treinamento do paramédico militar é de 16 semanas, o que obviamente não faz do cara um médico.
    No mais, parabéns pelo review!

    • Sim, ele era paramédico. Mas mesmo médicos tinham que se armar, o que o incluía. Valeu pela visita e volte sempre!

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