Emily Blunt não salva A Garota no Trem

por Marcelo Seabra

Se tem um tipo de filme irritante de se assistir, é aquele que tenta te enganar. Não de uma forma inteligente, claro. Quando é um Sexto Sentido (The Sixth Sense, 19999) da vida, ótimo, você quer até assistir de novo para tirar a limpo as situações. Mas quando é um A Garota no Trem (The Girl on the Train, 2016), você só quer esquecer a experiência e tomar uma dose de vodka. Até porque a bebida parece ser a vilã do filme.

Baseado no livro de Paula Hawkins, o roteiro de Erin Cressida Wilson (do fraco Homens, Mulheres e Filhos, 2014) nos apresenta a uma mulher que é a notória bêbada da região e que, devido ao álcool, tem apagões e precisa que os outros a lembrem do que fez. Diariamente. E é impressionante o que Emily Blunt (de O Caçador e a Rainha de Gelo, 2016) consegue fazer com um papel tão antipático e pouco crível. A atriz demonstra realmente estar naquela situação, dando um pouco de dignidade para sua Rachel. Só passa pela cabeça o show que ela poderia dar com um texto melhor. E menos vodka.

A falta de sentido do roteiro continua no fato de Rachel conseguir ver bem, em detalhes, o que acontece na vizinhança quando passa de trem. Não sabemos direito para onde ela vai ou o que faz, mas todos os dias ela pega o trem na cidade onde mora e ruma a Nova York. A melhor parte de seu dia parece ser a ida e a volta, quando olha ao redor e inventa histórias para as pessoas que vê. Quando uma dessas personagens some, ela se envolve, mesmo sem ter nada a ver com o peixe. Além de alcoólatra e vazia, ela é enxerida, e seus repetidos lapsos de memória não ajudam em nada.

Por causa dessa costura entre os fatos, o filme até consegue ser interessante em alguns momentos. Mas, quando mais situações são jogadas convenientemente, tudo parece desandar. No final, só queremos que termine e nem nos importamos que várias pontas fiquem soltas. Um roteiro cujo mistério depende da falta de memória da protagonista e da burrice de outros colegas não pode dar muito certo. Nas mãos de Tate Taylor, culpado por Histórias Cruzadas (The Help, 2011), é que não faria sentido mesmo. E há ainda outro agravante: as idas e vindas temporais. Parece que o simples fato de bagunçar a cronologia vai tornar as coisas mais interessantes. O resultado é confuso e mal conseguimos acompanhar esses saltos.

Além de Blunt, o elenco tem outras duas atrizes que são propositalmente parecidas, e isso pode causar confusão. Rebecca Ferguson (de Missão Impossível: Nação Secreta, 2015 – ao lado) vive a atual esposa do ex-marido de Rachel, e ela ficou loira exatamente para que possamos confundi-la com Haley Bennett (de Sete Homens e Um Destino, 2016), a garota vista pela janela do trem. Temos ainda Allison Janney (de Mom), Laura Prepon (de Orange Is the New Black) e uma ponta de Lisa Kudrow (a Phoebe de Friends). No time masculino, o bom Justin Theroux (de The Leftovers) tenta se salvar com pouca coisa para trabalhar; Luke Evans (de Velozes e Furiosos 7, 2015) foi escalado por ter um abdômen malhado; e Edgar Ramírez (de Joy, 2015) é outro que não tem muito o que fazer.

Pela participação dos personagens, percebemos que as mulheres têm muito mais importância para a trama. Se fossem mulheres fortes e independentes, seria uma boa exceção num oceano de coitadinhas que vemos por aí no Cinema. Mas essas mulheres são exatamente isso: donzelas em perigo, fracas, que dependem de seus parceiros. A começar pela obsessão de Rachel por Tom (Theroux), que agora é o porto seguro de Anna (Ferguson). A trama falsamente intricada pode pegar parte do público. Mas não é mais do que outro desserviço de Tate Taylor para o feminismo e para a sétima arte.

Rachel não supera o divórcio

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

View Comments

  • Eu ainda não assisti ao filme, mas gostei bastante do livro. Pelo que eu vi, algumas coisas estão um pouco diferente. A narrativa de idas e vindas, por exemplo, funciona muito bem na obra original. Uma das coisas que mais gostei na obra da Paula Hawkings é que o livro é um tapa de luva ao falar sobre o machismo. No livro ela surpreendeu. Assim que assistir ao filme, eu volto aqui para dar minha visão. A minha resenha de A Garota no Trem está aqui, caso se interesse:
    http://www.cinemadebuteco.com.br/buteco-literario/livro-a-garota-no-trem/

    • É, Felipe, pelo seu texto, parece que há muitas diferenças entre as obras e a forma como elas acompanham sua protagonistas. No filme, não acho que ficou interessante, como escrevi. E concordo com você quanto ao peso da bebida nas ações de Rachel. Abraço!

  • Emily Blunt é linda e segura qualquer filme. rs
    Sobre a capacidade de enxergar melhor de dentro do trem, quem já tomou umas e outras sabe o porquê:
    Como ela fica normalmente de cara cheia, vê tudo rodando. O movimento do trem compensa essa rotação e ela passa a enxergar melhor. kkk.

  • Bom, minha interpretação foi BEM diferente. Não li o livro para saber se a história original é assim, mas o filme é sobre relacionamentos abusivos e principalmente gaslighting. Elas não são donzelas em perigo brigando por um homem: elas são enganadas o tempo todo e com isso acham que seus problemas (bebida, auto estima e a persecução da ex, entre outros) são maiores do que a realidade e as tornam pessoas ruins.
    Entendo o ponto de vista porque teve hora no filme que me senti EXATAMENTE como no posto, mas assim que veio o "clique" passei a achar genial!

  • O filme realmente é confuso, mas achei interessante, só percebi que foi filmado em NY no final. A participação da mulheres no filme é marcante e a semelhança entre as mulheres também. Filme bom.

  • Incrível! O ator Edgar Ramírez se compromete muito com o personagem. É espectacular, superou as minhas expectativas, adoro os filmes de Edgar Ramírez. O último que eu vi foi Ouro E Cobiça, na minha opinião, foi um dos melhores filmes de drama 2016 que foi lançado. O ritmo é bom e consegue nos prender desde o princípio, cuida todos os detalhes e como resultado é uma grande produção, um filme que se converteu em um dos meus preferidos. Sem dúvida o veria novamente! É uma boa opção para uma tarde de filmes.

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