Fatos revoltantes ganham as telas com qualidade

por Marcelo Seabra

Alguns filmes causam revolta pelos motivos errados: são ruins de doer (não é, Wachowskis?). Outros, pelos motivos certos: chamam a atenção para questões importantes e são atuais mesmo voltando no tempo, para relatar um fato passado. E mostram o que a assim chamada humanidade é capaz de fazer uns com os outros, por causa de cor de pele, orientação sexual e outras características do indivíduo. Dois dos indicados ao Oscar de Melhor Filme deste ano, atualmente em cartaz, vão por este caminho. O Jogo da Imitação (The Imitation Game, 2014) nos apresenta a um gênio que ajudou a por fim na Segunda Guerra e, mesmo assim, sofreu como poucos por ser homossexual. E Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014) recapitula a luta encabeçada por Martin Luther King pelos direitos dos negros no auge do racismo sulista norte-americano.

Alan Turing (vivido pelo ótimo Benedict Cumberbatch, de Além da Escuridão – Star Trek, 2013) foi um matemático procurado pelo governo inglês para integrar um grupo cujo objetivo era quebrar o código das mensagens alemãs durante a guerra. Se o time conseguisse vencer a máquina Enigma, que codificava os textos, os aliados poderiam prever a ação do inimigo e salvar as vidas de milhares de soldados e acabar com o conflito. Turing era uma pessoa complicada, difícil nas relações interpessoais, e o filme acompanha a integração dele com os demais, dentre os quais deve-se ressaltar Hugh Alexander (Matthew Goode, de Segredos de Sangue, 2013) e Joan Clarke (Keira Knightley, de Operação Sombra – Jack Ryan, 2014).

A direção de Morten Tyldum não é das mais inspiradas, ficando longe do suspense causado por seu trabalho anterior, Headhunters (2011). Mas o filme funciona bem graças a vários fatores, como a trilha apropriada e o roteiro dinâmico, e o principal deles é o protagonista. Cumberbatch, que sempre busca personagens desafiadores, retrata Turing como alguém cheio de reservas, que parece ter uma barreira à sua frente que impede qualquer um de se aproximar. O fato de ele ser gay numa época em que isso era proibido explica muita coisa, e também o motivo de hoje ele não ser conhecido e exaltado como um dos grandes nomes do século. O ator traz uma estranheza a Turing que fica quase no limite de causar repulsa, tamanha é a antipatia que ele gera num primeiro momento. Vencida essa carapaça, há doçura que ele também sabe dosar.

Como o roteirista novato Graham Moore está mais interessado no episódio da guerra, a questão da homossexualidade de Turing fica em segundo plano. Mas o filme não a evita, apenas não se aprofunda, o que se mostra apropriado para a condução da trama, com revelações acontecendo no momento certo. Algumas alterações foram feitas para fins dramáticos, mas o levantamento dos fatos tem sido realizado há anos. Andrew Hodges, autor do livro Alan Turing: The Enigma, no qual o roteiro é baseado, vem popularizando tópicos ligados a ciências e à matemática e é reitor de uma grande escola da Universidade de Oxford. O livro e o filme fazem uma necessária e bem-vinda homenagem a Turing, que não podia continuar desconhecido tamanha foi sua contribuição ao mundo e a injustiça cometida contra ele.

Outro filme revoltante – no bom sentido – dessa temporada de premiações é Selma: Uma Luta Pela Igualdade, drama que acompanha a batalha dos negros em uma das cidades onde o racismo era mais gritante. Em Selma, Alabama, mais de 50% da população era negra, mas eles não podiam votar. A falta do voto impedia que se quebrasse um círculo vicioso que mantinha os negros bem longe de qualquer ideia de poder, e eles não tinham quem os representassem. O xerife Jim Clark (Stan Houston, de Sem Evidências, 2013) era o primeiro dos preconceituosos, e liderava uma polícia truculenta que não titubeava antes de agredir quem quer que fosse, independente de sexo ou idade. E ele contava com o suporte do governador do estado, George Wallace, mais uma ótima interpretação na carreira de Tim Roth (de A Negociação, 2012).

A favor da maioria da população, temos o Dr. Martin Luther King Jr., a principal grande atuação do longa. David Oyelowo (de Interestelar, 2014) faz uma bela composição de um homem que tem dúvidas e defeitos, mas não se cansa de buscar aquilo em que acredita. Mesmo que o custo seja alto. Sua família passa por privações, a maior sendo a própria ausência dele em casa, e sua esposa (Carmen Ejogo, de Uma Noite de Crimes: Anarquia, 2014) tenta ser compreensiva até frente aos golpes baixos dos inimigos. Ameaças à vida da família são uma constante e ela teme pelo dia em que alguma delas será cumprida. King negocia diretamente com o então presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson (Tom Wilkinson, de O Grande Hotel Budapeste, 2014), que, como um político padrão, não quer tomar nenhuma decisão polêmica que possa desagradar seu eleitorado.

Com a visão de mundo de hoje, é revoltante aceitar que era proibida aos negros a simples possibilidade de andar nos mesmos ônibus que os brancos, e que havia banheiros separados. Cada barreira dessas que caia era vista como uma grande vitória para quem buscava igualdade e soava como provocação para o outro lado, que não raro recorria à violência para “colocar aquelas pessoas em seu devido lugar”, ou algo assim. A exemplo de obras como Mississipi em Chamas (Mississippi Burning, 1988) e Assassinato no Mississipi (Murder in Mississippi, 1990), que giram em torno do mesmo caso, vemos como os agressores atuavam, impedindo os negros de terem acesso ao que lhes era garantido por lei e perseguindo quem era contrário. Se fosse branco, considerado “amigo dos negros”, tanto pior.

Com os casos de abuso da polícia e de racismo em geral nos Estados Unidos, a realidade retratada em Selma se torna muito próxima. E a repetição do erro é um fantasma sempre presente. Daí, a importância de voltar as atenções a este episódio. Para quem lê a sinopse, pode parecer um dramalhão, algo piegas que ocuparia o lugar de filme da semana na TV. Mas trata-se de um cartão de visitas fantástico para a diretora Ava DuVernay (acima, com Oyelowo), que era desconhecida, e seu roteirista estreante, Paul Webb, que foi muito sábio ao se ater a um momento delimitado e explorar toda a dramaticidade dele. Ambos demonstraram muita maturidade ao lidar com o material e evitar sentimentalismos baratos, sendo fiéis aos fatos e às motivações dos vários personagens envolvidos.

O que é mais difícil de aceitar em filmes como O Jogo da Imitação e Selma é se tratarem de histórias reais. Saber que o ser humano é capaz de tantas atrocidades e covardias dói. Mas é necessário relembrar para evitar insistir no erro. E a sociedade parece estar andando para trás no que diz respeito a conquistas sociais, principalmente quanto a minorias, que buscam apenas ter os mesmos direitos que os demais. Selma, inclusive, ressalta o tanto que é possível conquistar através do protesto não violento. E se buscava apenas o justo, nada a mais. E nenhum favor.

Os verdadeiros Lyndon Johnson e Martin Luther King em um dos vários encontros

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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