por Caio Lírio
A ideia genial de Gilbert consistia em registrar para um programa de TV o dia a dia de uma típica família americana de classe média alta, durante sete meses. Seus protagonistas: os Louds, da cidade de Santa Bárbara, na Califórnia. O pai é o empreiteiro Bill Loud (Tim Robbins) e a mãe e dona de casa, Pat (Diane Lane). Os cinco filhos do casal: Lance (Thomas Dekker), o mais velho, com então 20 anos e recém mudado para Nova York; os adolescentes Kevin (Johnny Simmons) e Grant (Nick Eversman); a jovem Delilah (Caitlin Custer) e Michelle (Kaitlyn Dever), a mais novinha, que na época tinha 14 anos. Mais que um programa televisivo, podemos configurar a ocasião como uma verdadeira experiência antropológica, onde, ao invés de buscar tribos e culturas distantes, Gilbert (James Gandolfini) se atém a algo que estava debaixo dos narizes telespectadores: a própria sociedade americana, em uma época de grandes rupturas sociais, comportamentais, sexuais e culturais.
O programa, com o título An American Family, foi ao ar em 1973, em 12 episódios de uma hora, e provocou um impacto até então nunca visto na TV americana. Foram registradas mais de 300 horas de material bruto, algo que levanta, mais uma vez, a discussão sobre a manipulação, através dos cortes da edição, na construção da narrativa televisiva, seja ela ficcional ou documental. Nisso, podemos dizer que a câmera do show deixou de ser apenas uma mosca na parede, como muitos pensavam que seria, para chafurdar no prato de sopa fervente que era a vida dos Louds. Muitos anos depois, em 2011, os diretores Robert Pulcini e Shari Springer Berman (de Anti-Herói Americano, 2003) encenaram todo o ocorrido em seu Cinema Verité (2011), longa para a TV que teve oito indicações ao Emmy Awards e três ao Globo de Ouro de 2012.
A dupla foi buscar nos anos 70 a história real daquela família, que no início achou tudo aquilo muito divertido, mas acabaram percebendo o quão tempestuosa se tornou a proposta. Era um verdadeiro pesadelo, manipulados pelo produtor, e tendo sua privacidade desnudada aos poucos em frente a milhões de telespectadores ávidos por bisbilhotar a vida alheia, tudo em nome da audiência. O filme mexe justamente na ferida exposta do programa de TV, que foi a questão da manipulação, revelando, assim, como Gilbert interferiu no documentário. O maior exemplo disso foi a traição de Bill, que teria sido revelada a Pat pelo próprio produtor, numa visível busca por mais dramaticidade e audiência. Enquanto a privacidade da família era revelada, Gilbert não escondia o tom sensacionalista dado ao programa. O elenco, talentoso e afiadíssimo, é um dos pontos fortes do longa e destaca bastante o esfacelamento da estrutura familiar. Enquanto Diane Lane apresenta uma matriarca espirituosa e irônica, mas ao mesmo tempo confusa com a repentina fama – mostrando Pat como uma persona extremamente complexa – Tim Robbins faz um Bill Loud que é o oposto de uma sociedade conservadora e careta. Na outra ponta, temos James Gandolfini, que traz um Craig Gilbert sedutor e ao mesmo tempo intimidador. Os Louds realmente ultrapassaram a barreira dos 15 minutos de fama e até hoje a história rende boas discussões quando o assunto é privacidade e vida alheia na televisão.
Dez anos depois, Alan e Susan Raymond, que acompanharam a família durante a execução do reality, filmaram An American family revisited: The Louds 10 years later. Os Raymonds tornaram-se documentaristas de prestígio, ganhando o Oscar em 1993 com o longa I Am a Promise: The Children of Stanton Elementary School. A mesma sorte não teve Gilbert, que nunca mais foi o mesmo desde o final da sua criação televisiva. Ele nunca mais trabalhou em cinema e TV e hoje vive, aos 85 anos, atormentado pelo que fez com os Louds. O ex-produtor também tentou processar a HBO e impedir o lançamento de Cinema Verité. Quanto à família, o que mais se destacou desde então foi Lance, que criou uma banda de rock (The Mumps), tornou-se um colunista envolvido com a causa gay e morreu de Aids em 2001, aos 50 anos. Pat e Bill se reconciliaram e estão juntos.
Cinema Verité faz da ambiguidade dos personagens um espelho da própria estrutura ambígua do programa e revela uma essência que até hoje buscamos entender nos realities shows que dominam a grade de programação das emissoras de TV: porque ainda somos fascinados pelo espetáculo da vida alheia e o que essa busca diz sobre nós mesmos? Esse é um retrato cruel e sem concessões que levanta muitas questões. Até onde temos esse direito, qual o limite desta mórbida curiosidade e quem é inocente ou culpado? As teses levantadas pela série ecoam em nossas mentes como um sistema intermitente de vigilância emocional. George Orwell talvez adorasse observar e avaliar o comportamento dessas pequenas moscas nos nossos pratos sujos de sopa. Nós, provavelmente, iríamos preferir passar despercebidos na parede da sala de jantar.
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