por Marcelo Seabra
“O mineiro só é solidário no câncer”. Esta frase, que denuncia a crueza do mundo, foi atribuída a Otto Lara Resende pelo colega Nelson Rodrigues, e acabou marcando uma das mais célebres histórias de Rodrigues, chamada propositalmente de Otto Lara Resende ou Bonitinha, Mas Ordinária. A peça acabou ganhando os teatros e, logo depois, chegou ao Cinema. A primeira adaptação foi em 1963, com Jece Valadão e Odete Lara, e seguiu-se uma segunda, em 1980, com Lucélia Santos, José Wilker e Vera Fischer. Em 2013, modernizada, a história está nas telas novamente, com a famigerada dupla Diler Trindade, o produtor, e Moacyr Góes, o diretor.
Para o papel principal dessa nova adaptação, foi convocado o ótimo João Miguel, visto recentemente em À Beira do Caminho (2012). Ele vive o mineiro Edgard, um sujeito humilde que recebe uma estranha proposta: se casar com uma menina bonita, de boa família, e ter todos os benefícios que viriam disso. Cabe a Peixoto (Leon Góes, habitué nos filmes do irmão), superior de Edgard no trabalho, fazer a proposta e convencê-lo das vantagens de deixar os escrúpulos de lado e garantir seu futuro, como o próprio Peixoto fez. A menina em questão é filha de ninguém menos que Dr. Werneck (Gracindo Jr., de Tainá 3, 2011), o milionário e imoral dono da empresa.
A frase de Otto Lara fica na cabeça de Edgard, que por ela entende que o todo mundo é inescrupuloso e com ele não seria diferente. Aceitar se casar com Maria Cecília (Letícia Colin, de Amor?, 2011) seria abrir mão de sua liberdade e arriscar passar o resto da vida à sombra dos Werneck, como capacho do doutor. A menina foi estuprada por cinco negros e, para evitar um escândalo na alta sociedade, a mãe decide preparar esse casamento. Cecília escolhe Edgard, que já trabalha para o pai há 11 anos, e ele fica indeciso entre a segurança do dinheiro e o amor à vizinha, a batalhadora Ritinha (Leandra Leal, de Boca, 2010).
A história tem inconsistências que podem incomodar. De início, já é de se estranhar por que um milionário inconseqüente não pagou profissionais para castigarem os estupradores da filha. Uma certa dose de racismo é observada, já que o problema parece ser maior porque os estupradores eram negros. Claro que tirar a trama dos anos 50 e jogá-la nos dias de hoje traria alguns problemas que precisariam ser tratados. Mas a base da peça é a honra da menina estuprada, que seria restaurada com um casamento imediato. Hoje, isso só se justificaria nos grotões brabos do interior do país, e não no Rio de Janeiro. Se a premissa é difícil de aceitar, o que vem pela frente já é recebido com um pé atrás. E Nelson Rodrigues pode até tratar de temas atemporais, mas para abordá-los ele usa costumes de uma época que não permitem uma transposição adequada. Ao contrário de Shakespeare, com quem isso tem sido feito há um bom tempo (exemplo aqui).
A jovem e desconhecida Letícia Colin tem sua boa aparência apropriada por Góes, como fez Bertolucci em Beleza Roubada (Stealing Beauty, 1996), e constrói uma figura imaculada. Ela mantém o alto nível do elenco – João Miguel inclusive ganhou o prêmio de Melhor Ator no Cine PE 2013 – e é uma atriz que valerá a pena acompanhar. Ao contrário das produções anteriores, o Bonitinha, Mas Ordinária de 2013 não é uma pornochanchada e não tem desfiles de mulheres peladas, a nudez é bem discreta – algumas cenas não poderiam faltar, tratando-se de Rodrigues. Ainda mais em comparação com Lucélia Santos na versão de 1980. Isso é até previsível, sabendo-se que a dupla Góes e Diler está por trás de filmes da Xuxa e do Padre Marcelo. Mesmo sem tanta ousadia e com o anacronismo, dá para se divertir.
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