Nessa casa a espiada vale a pena

por Marcelo Seabra

“Alguns filósofos reacionários dizem que haverá uma invasão de bárbaros. Os bárbaros já estão em nossas salas”. É mais ou menos isso que diz o professor Germain (Fabrice Luchini, de Potiche, 2010) a respeito de seus alunos. Uma redação sobre o cotidiano é entregue com apenas duas ou três frases, e a língua francesa é constantemente assassinada. Por isso, é tamanha a surpresa dele ao ler o texto de Claude Garcia (Ernst Umhauer), que denuncia um grande talento para contar histórias. É daí que parte Dentro da Casa (Dans la Maison, 2012), produção francesa que chega aos cinemas nacionais essa semana.

O diretor François Ozon, de longas como Swimming Pool (2003), 8 Mulheres (2002) e Potiche, adapta uma peça de Juan Mayorga que mistura assuntos intrigantes como obsessão e privacidade e as dualidades entre arte e literatura, realidade e ficção. Pelo fato de ser um filme francês, é interessante perceber que as referências usadas pelo professor não são os habituais Dickens, Hemingway ou Poe, mas Flaubert e La Fontaine. Germain é um sujeito extremamente erudito, mas frustrado por não fazer parte da turma de escritores que idolatra. Claude pode ser uma espécie de projeto pessoal, a projeção do sucesso editorial que nunca teve.

O problema é o assunto que interessa a Claude (ao lado): a vida de uma família burguesa normal, os Rapha. Rapha filho (Bastien Ughetto) é seu colega na escola e precisa de ajuda com a matemática. Dessa forma, ele consegue entrar na casa e conhecer Rapha pai (Denis Ménochet, de Bastardos Inglórios, 2009) e Esther (Emmanuelle Seigner, de Piaf, 2007), a bela mãe que exerce sobre ele um fascínio perigoso. Germain e sua esposa (Kristin Scott Thomas, de Bel Ami, 2012) viram leitores assíduos de Claude, num misto de curiosidade e reprovação. O texto é bastante irônico, crítico, até maldoso, revelando em Claude uma faceta de Tom Ripley, personagem de Patricia Highsmith que empregava seu talento de observação para o mal.

O jovem Umhauer é quase um estreante no cinema, com apenas O Monge (Le Moine, 2011) no currículo, e já convence. Seu Claude é misterioso, curioso e manipulador, levando o incauto Germain a atitudes impensadas. Sua escrita é tão envolvente que o limite entre ficção e realidade fica enevoado e ficamos à mercê do escritor de primeira viagem. Professores sabem como é bom ter um aluno que se dedica à lição, e Germain se torna um cúmplice, e um personagem. Para o espectador, não é diferente: acompanhamos um roteiro que segue as convenções ditadas por seu protagonista e somos levados junto para dentro da casa dos Rapha. O final, claro, não poderia ser outro, mesmo sendo surpreendente, como recomenda o mestre.

“E isso seria arte?”

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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