Obra de Victor Hugo ganha vida novamente

por Marcelo Seabra

Já adaptada diversas vezes para o teatro e o cinema, Os Miseráveis (Les Misérables), peça do francês Victor Hugo, foi publicada em 1862 e ainda hoje é considerada uma das grandes histórias de todos os tempos. Os temas abordados são universais e atemporais, como perdão, obsessão, honra e redenção, e a obra sempre volta à mídia. A mais nova adaptação, já em cartaz no Brasil, é um longo musical que traz um elenco de estrelas e arrebatou oito indicações a Oscars, incluindo Melhor Filme. Curiosamente, o diretor tem sido deixado de lado em quase todas as menções feitas, provando que o longa conseguiu ficar acima da média apesar dele.

À frente dos atores, Hugh Jackman (o eterno Wolverine dos X-Men) mostra ser um artista completo, cantando de forma satisfatória e colocando bastante emoção na voz. Seu antagonista, vivido por Russell Crowe (Robin Hood, 2010), não consegue o mesmo resultado, soando falso cada vez que abre a boca. Enquanto Jackman demonstra estar em um momento intimista e sofrido, Crowe parece cantar para uma plateia, e a voz dá a impressão de sair de outra pessoa, como se ele fosse dublado. O outro grande destaque é Anne Hathaway (de Batman Ressurge, 2012), que tem uma participação pequena, mas significativa. Jackman e Anne têm os papéis mais trágicos e, também pela competência deles, acabam tendo mais relevância que os demais. Ela, inclusive, é tida como favorita à estatueta careca como Melhor Atriz Coadjuvante, mesmo sem cenas de nudez, como ela brincou na edição que apresentou do Oscar (ela disse que achava que seria indicada sempre que tirasse a roupa, mas não aconteceu com Amor e Outras Drogas, de 2011).

A história se inicia na Paris de 1815, quando Jean Valjean (Jackman) chega ao final de 19 anos de cadeia, condenado por roubar pão para alimentar os sobrinhos famintos. Pelas tentativas de fuga, os cinco anos iniciais aumentaram e, ao sair, ele leva um documento que relata sua condição de criminoso em condicional, o que dificulta sua vida e o obriga a se apresentar com frequência às autoridades. Ao roubar uma igreja, ele é acobertado pelo padre local e é tocado pela bondade, decidindo assumir uma nova identidade e recomeçar longe dali, onde pudesse ajudar os outros. Mas Javert, o inspetor de polícia (Crowe), não vai descansar enquanto não recuperar o prisioneiro que não mais se apresentou. Aí, começa uma perseguição que durará a vida toda, marcada por dramáticos encontros e fugas.

A base direta para o texto não é exatamente o livro de Hugo, mas o musical de Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil, e os dois contribuíram com o roteirista William Nicholson (de Gladiador, 2000) e o compositor Herbert Kretzmer. Juntos, os quatro criaram uma obra que é toda cantada, e não apenas traz momentos de cantoria, e o áudio é captado em cena, e não inserido depois. Assim, é bem estranho acompanhar cenas que deveriam trazer tensão e apreensão, com conversas murmuradas, que acabam chamando a atenção para o fato de estarem todos cantando. Há dois tipos de canções: aquelas que simplesmente se adequam às falas; e as mais grandiosas, que externam sentimentos e não raro contam com diversos intérpretes. Nos dois casos, são bem expositivas, muitas vezes se tornando repetitivas, o que torna a sessão cansativa, com intermináveis 158 minutos. E sem direito a Susan Boyle cantando I Dreamed a Dream, que ficou com Anne.

O roteiro não é dos mais claros, e a passagem do tempo é questionável. E, para piorar, alguns eventos da história não ficam claros, como a razão da revolução nas ruas que mobiliza os jovens da cidade. Qual seria o motivo? E o objetivo? Não se sabe. A confiança de Cosette (Amanda Seyfried, de O Preço do Amanhã, 2011) em Valjean é imediata, e o amor dela por Marius (Eddie Redmayne, de Sete Dias com Marilyn, 2011 – ambos ao lado) é ainda mais atropelado. A participação de Sacha Baron Cohen (de O Ditador, 2012) e Helena Bonham Carter (de Sombras da Noite, 2012) é engraçada, mas inverossímil e completamente fora do tom da produção inteira. Apesar dos problemas apontados, deve-se ressaltar que a qualidade técnica do longa é impecável. Cenários e figurinos ajudam muito na caracterização e no trabalho dos atores.

E chegamos à questão mais delicada de Os Miseráveis: Tom Hooper. Vindo de diversas séries de TV, o diretor ganhou notoriedade ao levar diversos prêmios por seu trabalho em O Discurso do Rei (The King’s Speech, 2010). Muitos ficaram contra essa premiação por várias opções feitas por Hooper, que parecem mostrar um profissional inexperiente e maravilhado com o poder que tem em mãos ao conduzir uma produção dessa grandeza. Cada cena parece ter sua assinatura, ao invés de permitir que as filmagens corram de modo a inserir o público na história. Pelo contrário, ele parece chamar atenção para seu imenso talento, como ele deve pensar. E os enquadramentos são tão inusitados, por assim dizer, que quase deixam o personagem de fora. Em algumas cenas, é possível brincar de “Onde está o Wally?”, já que a composição é bem confusa, além de referências bestas de tão óbvias, como os caixões em frente às barricadas.

Rebeldes com causa, mas qual?

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

View Comments

  • Vale muito a pena por causa da trilha sonora. Tem outra versão dessa história, gravada pra TV, com Depardieu e John Malkovich...
    Ah, vi que você mencionou "en passant" o filme "O Preço do Amanhã". Pena que não fez um texto sobre ele, valeria a pena...

    • A história tem várias versões, Renato, inclusive uma com Anthony Perkins e Richard Jordan e outra com Liam Neeson e Geoffrey Rush. Cada uma tem seus pontos positivos. Já In Time, fiquei devendo...

  • O Neeson tinha que fazer o papel do inspetor Javert... Aí faria sentido aquela frase: "I will look for you, I will find you and I will kill you"...

    • Acho que ele prefere o papel do mocinho, por mais louco que seja... hehehe

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