Nova encarnação de Sherlock agrada na TV

por Rodrigo “Piolho” Monteiro

Desde o ano 2000, Sherlock Holmes se tornou um personagem de domínio público na maior parte do mundo. As leis de direitos autorais variam, mas na maioria dos países, um personagem cai em domínio público entre 60 e 70 anos após a morte de seu criador (Conan Doyle faleceu em julho de 1930), e isso fez com que diversas produções estreladas pelo personagem pipocassem ao redor do mundo, não só no cinema e na tv como nos quadrinhos e mesmo na literatura. Nos dois últimos anos, os longas de Guy Ritchie foram os que mais chamaram a atenção, ainda que tenham desagradado boa parte dos fãs de Holmes, aqueles acostumados com o personagem dos livros, já que a produção hollywoodiana enfocou mais o lado do Holmes aventureiro e menos cerebral.

Coincidentemente ou não, em 2010, o canal BBC 1, de Londres, colocou no ar sua própria versão do mito. Intitulada simplesmente Sherlock, a série – cujas temporadas estranhamente têm apenas 3 episódios com uma hora e meia de duração cada – decidiu tomar o caminho oposto ao da produção hollywoodiana e voltar mais à essência do personagem, ainda que adaptado para o século XXI. Benedict Cumberbatch (de O Espião que Sabia Demais e do vindouro O Hobbit) e Martin Freeman (de O Guia do Mochileiro das Galáxias e também em O Hobbit) vivem, respectivamente, Holmes e Watson, e os criadores da série, Mark Gatiss e Steven Moffat, fazem tudo o que podem para manter os personagens fieis às fontes originais. Assim sendo, o que temos aqui é um Sherlock Holmes quase repulsivo, dono de um raciocínio absurdamente rápido e um completo desrespeito – ou mesmo desconhecimento – das emoções daqueles que o rodeiam. Até fisicamente a escolha de Benedict foi acertada, já que Doyle sempre descreveu Holmes como uma pessoa alta e magra, o que bate com o ator.

Outra característica interessante da série é o fato de, muitas vezes, os escritores usarem os textos de Doyle como base para suas adaptações. Pegue, por exemplo, o primeiro episódio da série, A Study in Pink (Um Estudo em Rosa, em tradução livre), que faz referência justamente a Um Estudo em Vermelho. Em ambos, vemos o primeiro encontro entre o excêntrico detetive consultor e seu futuro colega de apartamento, um ex-combatente britânico ferido em combate no Afeganistão (uma variação do Watson “original”), somos apresentados a seu irmão Mycroft (vivido pelo produtor Mark Gattis, que foi um personagem regular na cultuada série britânica Dr. Who), à sua senhoria, a divertida Sra. Hudson (a veterana da TV britânica Una Stubbs) e ao Inspetor Lestrade (Rupert Graves, de V de Vingança), aqui menos paspalho do que o personagem original. A nêmesis de Holmes, James Moriarty (interpretado de maneira excêntrica e quase caricatural, que combina com o personagem, por Andrew Scott, de O Resgate do Soldado Ryan), aqui não mais um professor, faz sua primeira aparição ao final da temporada, ainda que sua influência seja sentida já no segundo episódio, The Blind Banker.

Os produtores da série se esmeraram em mostrar mesmo o lado quase assexuado de Holmes, que não percebe as investidas românticas que a médica legista Molly (Loo Brealey) joga para cima dele. As atualizações para que o personagem se encaixe na Londres do século 21 também foram bem boladas. Se, no original, Holmes tem um leve vício em ópio e heroína, aqui ele é um fumante. No entanto, devido às leis anti-fumo estabelecidas recentemente na capital britânica – onde é proibido fumar mesmo em locais públicos – Holmes alimenta seu vício de duas maneiras: adesivos de nicotina e casos difíceis. Para fazer propaganda de seus serviços, Holmes tem um blog; da mesma forma, Watson tem um no qual conta os casos de Holmes e isso acaba atraindo as luzes da ribalta para a dupla, com todos os problemas que a presença constante de paparazzi e boatos dos tablóides ingleses podem trazer.

Criado no fim do século XIX pelo médico Arthur Conan Doyle (que, anos mais tarde, receberia o título de Cavaleiro da Coroa Britânica, tornando-se um “Sir”), Sherlock Holmes fez sua estreia em 1887, na revista Beeton’s Christmas Annual com seu primeiro caso, A Study in Scarlet. Nele, vemos o primeiro encontro entre Holmes e seu eterno parceiro, John Watson, e somos apresentados às incríveis capacidades dedutivas do personagem. O que dá a Sherlock Holmes um apelo tão popular é simples: a combinação quase perfeita de uma genialidade e poderes de observação absurdos aliados a uma total desconsideração pelas opiniões ou sentimentos de qualquer pessoa, características das quais o produtor David Shore se apropriou quando construiu seu personagem mais famoso, o brilhante Gregory House, protagonista da série House M.D. e vivido na telinha há quase oito anos pelo britânico Hugh Laurie.

Sherlock foi – e é – tão grande que ele é, segundo o livro dos recordes, o personagem com o maior número de aventuras cinematográficas dedicadas a si (adaptadas ou não dos quatro romances e 56 contos em que aparece). Holmes apareceu na tela grande nada mais nada menos do que 211 vezes, sendo vivido por 75 atores diferentes, dentre eles grandes nomes do cinema como Peter Cushing, Christopher Lee e Robert Downey Jr.

No fim das contas, a série Sherlock traz um bom contraponto para os filmes de Guy Ritchie. Uma série bem escrita, personagens atualizados ainda que fiéis aos originais, com aquela típica dose do humor britânico apreciado por fãs do gênero. Indispensável para fãs da maior criação de Conan Doyle. No Brasil, a segunda temporada deve chegar em DVD e Blu-Ray este mês, depois de ter alcançado altos índices de audiência na televisão americana e, principalmente, na inglesa.

Existem aliens entre nós e um deles atende por Benedict Cumberbatch

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • Li o Sir Conan Doyle há muito e realmente me decepcionei. No entanto, achei que seria interessante para as telas - me pareceu perfeito para isso. Não me atrevo a dizer que era um "roteiro perfeito" pois pouco entendo de roteiros. Pensei, apesar de.
    Achei Um Estudo em Vermelho uma literatura pobre e pretensiosa (em méritos literários), mas de grande potencial para o entretenimento. Desde então tenho assistido ao grande detetive.
    Quanto às produções citadas no post, diria que os filmes de G.R. são agradáveis, mas fogem muito à essência de Holmes, a começar pelo sotaque de Robert Downey Jr.
    Já em Sherlock, da BBC, acertou-se muito bem a mão ao 'modernizar' e manter o estereótipo de Holmes; mesclar o atual e as reminiscências dos originais de Doyle.
    As séries inglesas têm temporadas curtas, entre 3 e 6 episódios. Talvez esse seja, até então, o maior problema para Sherlock.

    • Engraçado, Darcy, achei tão interessante em Um Estudo o fato de metade da história ser a explicação do fato. Eu gostei bastante. Mas é bom conhecer e ter uma opinião formada.
      Abraço!

      • Pois então, Marcelo, como mencionei anteriormente, achei agradável; aquilo que chamo de "literatura de praia". Deve fazer uns quinze anos quando li Doyle e lembro que um dos pontos cruciais para o meu desalento literário foi a cinza de um charuto (trichinopoly, ou algo assim) ter sido identificada: way far-fetched.
        Estava numa fase realista brasileira e devorando Machado. Foi injusta e covarde a comparação que fiz. Meu professor de literatura que me havia recomendado e emprestado o livro de Doyle acabou por consentir: "Verdadeiramente fiz besteira, entregar ACD nas mãos de um machadiano...".

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