Clássico: À Beira do Abismo adapta Chandler em grande estilo

por Marcelo Seabra

Se você é fã da obra de algum dos envolvidos na realização de À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946), não vai se decepcionar com o longa. Se não sabe do que se trata, assista sem medo. Trata-se de um clássico do gênero policial, mais especificamente o noir, que conta com nomes altamente gabaritados. Como ponto de partida, é bom ressaltar que a história é de ninguém menos que Raymond Chandler, um dos pais do romance policial americano. Seu livro O Sono Eterno ganhou o merecido tratamento dispensado a obras-primas nessa adaptação.

No elenco estão dois mitos da chamada Era de Ouro de Hollywood, Humphrey Bogart e Lauren Bacall, que engatavam um romance no início das filmagens. Esta era a segunda produção que contava com ambos. Com presenças igualmente poderosas em frente às câmeras, o já quarentão astro trava um forte duelo de interpretações com a jovem atriz, ainda em seus vinte e poucos anos. Como se não bastasse o perfeito casal de protagonistas, o filme ainda conta com competentes coadjuvantes, que ajudam a dar vida aos diversos personagens envolvidos na trama.

Philip Marlowe (Bogart), o célebre detetive particular criado por Chandler, tem aqui mais um caso. À primeira vista, nada muito complicado. O velho general Sternwood (Charles Waldron) está sendo chantageado. Basta achar o responsável e acabar com o esquema. Mas nada é tão simples no universo de Chandler, onde tudo acaba em sedução e assassinato. Logo, Marlowe descobre quem são as duas filhas do general, a manipuladora e ninfomaníaca Carmem (Martha Vickers) e a decidida Vivian (Bacall), um pouco mais velha e experiente, já tendo passado por um casamento.

À medida que a fita prossegue, a trama ganha dimensões maiores e apresenta mais personagens, todos envolvidos em algum crime. Eddie Mars (John Ridgely) é um empresário do jogo, proibido naquela época. É a ele que Vivian recorre sempre que seus fundos para apostas acabam. Boa pagadora, ela sempre tem seu crédito estendido. A dona da livraria Acme, vivida por Dorothy Malone, é outra figura interessante que cruza o caminho de Marlowe, acolhendo-o em uma tarde chuvosa e lhe dando algumas informações valiosas.

Que o elenco é altamente gabaritado, é indiscutível. Bogart, inclusive, já tinha vivido Sam Spade, outro detetive clássico da ficção noir, em O Falcão Maltês (The Maltese Falcon, 1941), baseado no livro de Dashiell Hammett. Bacall vinha de duas outras adaptações de escritores famosos, Ernest Hemingway (Uma Aventura na Martinica, de 1944, também estrelado por Bogart) e Graham Greene (Quando os Destinos se Cruzam, 1945). Elisha Cook Jr., um dos coadjuvantes, já contava mais de quarenta trabalhos (um deles, O Falcão Maltês) quando participou deste. Para comandar esse pessoal, a Warner contratou um diretor não menos renomado: Howard Hawks.

Trabalhando no mundo do cinema desde a segunda década do século XX, Hawks já tinha assinado mais de trinta produções, além de participar de outras tantas como assistente de direção, editor, roteirista ou produtor. Entre os títulos, a versão original de Scarface  (de 1932, refilmado por Brian De Palma em 1983) e Uma Aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944), primeiro encontro nas telas da casal Bogart-Bacall. Diz a lenda, sobre este longa, que Hawks teria apostado com Hemingway que faria um bom filme com o pior dos livros do escritor.

Mesmo mantendo-se fiel à essência da história de Chandler, conservando até alguns diálogos, o diretor imprime sua marca em À Beira do Abismo. Alguns elementos eram comuns à obra de ambos, como o cinismo do protagonista, o durão mas sentimental Marlowe. Mas Hawks aproveita e exercita suas belas tomadas de câmera, que revelam progressivamente os elementos do ambiente, além de subverter alguns clichês do gênero policial. A narração do detetive, tão comum na época, é sabiamente dispensada, permitindo que conheçamos as ações de Marlowe à medida que elas acontecem, sem que ele avise antes o que fará. E parece que assistimos ao filme pelos olhos dele, já que ficamos sabendo dos fatos junto com ele, que participa de quase todas as cenas. Isso aumenta a cumplicidade entre público e personagem, já que todos dispomos das mesmas informações.

Boa parte da responsabilidade pelo ótimo resultado obtido por Hawks em À Beira do Abismo deve ser creditada aos roteiristas. Todos já haviam trabalhado com o diretor e voltariam a fazê-lo. William Faulkner, escritor vencedor de dois prêmios Pulitzer e do Nobel de Literatura, e Jules Furthman também escreveram Uma Aventura na Martinica, entre outros. Leigh Brackett, o terceiro roteirista, recebeu bastante atenção em 1980 quando escreveu O Império Contra-Ataca (The Empire Strikes Back). E ter Max Steiner (Casablanca) na composição da trilha sonora engradece qualquer produção. Não que esta ainda precisasse de mais grandiosidade.

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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