O Vingador do Futuro ganha refilmagem sem propósito

por Marcelo Seabra

É bem incompreensível a razão que leva estúdios a refilmarem histórias já bem apresentadas e que nem envelheceram tanto assim. O Vingador do Futuro (Total Recall) é um longa marcante lançado em 1990 que representou muito nas carreiras de seus envolvidos, principalmente do astro Arnold Schwarzenegger, da futura estrela Sharon Stone e do diretor Paul Verhoeven. Philip K. Dick, autor do conto em que o filme se baseou, tem outras histórias não filmadas e é revoltante o fato de voltarem na mesma, ao invés de buscarem algo novo. Refilmagem não é garantia de sucesso ou de dinheiro em caixa. Ainda mais quando não acrescenta nada ao original.

O novo Vingador do Futuro traz Colin Farrell no papel que foi de Schwarzenegger e o irlandês parece se levar bem mais a sério, o que já diminui o charme do projeto. Farrell estrela sua segunda refilmagem: ele foi o vampiro Jerry do recente A Hora do Espanto (Fright Night, 2011), além das versões para cinema das séries S.W.A.T. (2003) e Miami Vice (2003). Sua carreira alterna altos e baixos e, entre os bons trabalhos, está outra adaptação da obra de Dick, Minority Report (2002). Disputam com Farrell a atenção do espectador as beldades Kate Beckinsale (a vampira Selene da franquia Anjos da Noite), que parece se divertir no modo “psicopata descontrolada”, e Jessica Biel (de Esquadrão Classe A, 2010), que surge em cena insossa como sempre.

A trama acompanha o operário Douglas Quaid (Farrell), que anda tendo sonhos agitados em que está lutando contra um inimigo significativo e acorda tendo a impressão que sua vida poderia ser mais emocionante do que a rotina que vive com a esposa (Kate). Eles moram na Colônia e trabalham na Federação Unida da Bretanha, como a maioria da população que sobreviveu à guerra química que destruiu a maior parte do mundo. Um belo dia, Quaid decide conhecer melhor a Rekall, empresa que promete implantar memórias divertidas em seus clientes por uma quantia módica. Ele poderia escolher o lugar que visitaria, o papel de desempenharia, a companhia feminina que teria etc. Durante o procedimento, algo sai errado e Quaid se vê cercado pela polícia, sendo obrigado a reagir. A partir daí, sua vida se torna uma correria incessante e ele vai conhecer melhor as forças políticas por trás da F.U.B. e os rebeldes da Colônia, dentre eles Melina (Jessica).

No elenco, além do trio principal, temos a participação de dois veteranos extremamente mal aproveitados. Bill Nighy (o vampiro Viktor dos Anjos da Noite) aparece rapidamente e pouco pode fazer com as falas bestas que lhe cabem. E Bryan Cranston, que ninguém se cansa de elogiar em Breaking Bad, é o vilão esquemático Cohaagen, que participa de cenas constrangedoras de luta. John Cho (de Star Trek, 2009), como o técnico da Rekall, e Bokeem Woodbine (de Demônio, 2010), que vive o amigo Harry, completam o festival de constrangimento. A discussão que o filme pretende levantar sobre identidade passa por todos estes personagens, cada um tem uma fatia desse bolo indigesto.

Como se trata de uma refilmagem, é inevitável comparar as obras. E há ainda o conto do qual ambas se originaram, que também entra na equação. O novo longa empalidece em qualquer uma das disputas, se tornando apenas uma versão genérica da obra do visionário e ligeiramente desequilibrado Dick. O escritor criou universos futurísticos opressivos e reforçava o clima pessimista com regimes totalitários, um alto consumo de drogas sintéticas e muita paranóia. É comum que seu protagonista não saiba exatamente o que é real, o que cria uma ambiguidade bem interessante. Isso não acontece nesse Vingador, que perde os detalhes da trama de 1990 e, por isso, deixa alguns buracos.

Os envolvidos chegaram a dizer, durante a produção, que seria uma nova abordagem do conto, e não uma refilmagem. O resultado acabou ficando no meio do caminho. É, sim, uma refilmagem, mas com tantas alterações que se afastou da base. Marte, por exemplo, ficou de fora, numa tentativa pedestre de trazer o conflito entre classes para a Terra, com os rebeldes da Colônia buscando independência da Federação. E a violência que Verhoeven empregou bem em seu longa foi evitada, chegando ao cúmulo de usarem policiais autômatos para diminuir a quantidade de sangue derramado. O politicamente correto chegou e tomou conta – espero que o mesmo não aconteça com o novo Robocop, prometido para 2013.

O visual de Blade Runner, clássico de 1982, tem reflexos na organização da Colônia, que mais parece uma favela, e os cenários da F.U.B. fazem menção a diversas produções de ficção-científica, como Minority Report ou Eu, Robô (2004). Os efeitos criados com computação gráfica permitem muitas inovações que não eram possíveis em 1990, e a riqueza de detalhes impressiona. O que aumenta a decepção quando nos voltamos à trama, escrita pelos irregulares Kurt Wimmer (de Equilibrium, de 2002, e Ultravioleta, de 2006) e Mark Bomback (de O Enviado, de 2004, e Incontrolável, de 2010). Bomback, inclusive, trabalhou com o diretor Len Wiseman no quarto Duro de Matar (2007), que também desrespeita as leis da gravidade e a inteligência do público. Wiseman aproveita que está no comando para aumentar a participação da esposa, Kate, que acaba resumindo em um dois papéis (que foram de Sharon Stone e Michael Ironside). Seu castigo é ter que vê-la, na cama, aos beijos com o galã Farrell, e ainda ter seu filme malhado pela crítica mundial.

Douglas Quaid revoga a lei da gravidade

Sobre Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.
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