A despedida de Maria

Raniere Sabará

Maria, com seus 23 anos, queria desbravar o mundo. Sentia que precisava fugir de toda a negação que um dia lhe impuseram. Estendendo as roupas no varal, cantava cantigas que ecoavam felicidade. A liberdade parecia tão distante..

Maria queria se emocionar, mas, a fraqueza não podia ser transparecida, pensava ela: “preciso ter forças para que eu consiga sobreviver”. Enxugava as lágrimas e o sentimento de culpa fazia parte do seu ser.

“Desculpa”. Dizia, Maria, por não ter passado as roupas que estavam no varal. O tempo era curto para tantas obrigações. E no tempo que restava, Maria caminhava na solidão.

Na gaveta de um pequeno armário na dispensa, trancafiada a sete chaves, Maria escondia algumas divagações da vida em um guardanapo. Era o que lhe restava. Sonhava com um mundo melhor, onde seu corpo não seria sinônimo de objetificação. Opressão. “A outra”.

Mas, ao se banhar, Maria sentia que podia ser o que quisesse. Borbulhava em sorrisos. Se tocava de forma sútil, como se seu corpo pertencesse somente a si.

Aqueles quinze minutos com a água escorrendo da cabeça aos pés, era o que lhe bastava para bem-aventurança.

Na noite que antepassara, Maria tivera um sonho. Nesse sonho, Maria estava no centro de uma ciranda, rodeada pelas grandes sábias de sua vida. Com o ouvido aguçado, escutava-se de fundo uma voz que a dizia: “[..] a mulher acha-se, em terra, cercada de tabus como todos os seres sagrados; ela própria é tabu. Em virtude dos poderes que detém olham-na como feiticeira, como mágica; associam-na às preces, torna-se às vezes sacerdotisa de seu próprio feitiço”.

Maria, assustada, acorda. Entendeu que aquela voz era um sinal.

Se recompõe e prepara o café. Alberto, musicista da autêntica bossa nova, se sacia e levanta sem ao menos pedir licença. É hora de voltar a vida boemia. Se encaminha em direção a porta, coloca seu chapéu e sai para vadiar.

Era 15 de março de 1985. Nas ruas de santa tereza, as vozes da democracia tomavam conta dos asfaltos pisoteados pela multidão. Pela janela do sobrado, Maria balanceava o pano de prato em sua mão. A felicidade a encontrava por um instante.

A voz do sonho ecoava no seu pensamento. Lembrou-se da reflexão escrita em seu guardanapo, na qual sempre dizia: “A mulher e o proletário, sempre serão ambos oprimidos”.

Maria, então, decide ser diferente. Age da mesma forma que Alberto a fez. No entanto, dessa vez, Maria se despede do lar e esvaíra com a multidão, a caminho do encontro com a liberdade que tanto sonhou.

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