Queda

Victória Farias

Aqui, do sopé da montanha e ao lado do deus homem, escrevo minhas últimas palavras. Não há mais nada a ser dito, nenhuma afirmação se plana em meu consciente. Tudo o que vivi até agora, todos aqueles a quem acolhi, seguiram seu caminho solenemente.

Sem grandes despedidas, sem faixas nem balões, as malas foram feitas e os vistos assinados. Ouvi os passos deles na soleira da porta enquanto caminhavam, no escuro, em busca de um admirável mundo novo. Enquanto refletia, pude ouvir também os cavalos dos meus inimigos se aproximarem. Finalmente, e não sem um pouco de alívio e desalento, foi me dado a oportunidade de também ir embora.

O instante infindável, em que todas as minhas lutas passam diante dos meus olhos, chegou para mim. Abraçá-lo não é o problema, mas sim deixá-lo ir, pois se ele se for, eu me vou junto dele. O corpo se misturando a fumaça do tempo e se dissipando no decorrer da eternidade. A cada batida de segundo eu sou menos eu. A cada hora que se encerra eu não sou mais. Já é tarde. O instante já está aqui. Antes mesmo de ser bem-vindo ele já fez morada. Me encara pacientemente pela janela, aguardando, me convidando. Não há linha de fronteira que possa impedi-lo, nem estrangeiro que possa guerrear contra, muito menos reinos que possam para-lo. O instante caminha, lentamente, entre o sagrado e o profano, o humano e o espiritual, constantemente nos lembrando de que não temos controle de nada. Muito menos das nossas próprias nações. Muito menos de nós mesmos.

Partir foi uma escolha que fiz antes mesmo de tomar o primeiro fôlego. Quando me dei por mim, cá estava eu, ao sopé da montanha, admirando tudo aquilo que um dia acreditei ser meu ser eu. Ao meu lado, me encarando sem olhos e suspirando sem oxigênio, o deus homem recolhe os seus pecados e se prepara para ser julgado por eles novamente. O meu pescoço entrega a chegada do instante. Ninguém lerá a carta de despedida que eu deixei, sob um peso de papel, na mesa de jantar. Mais rápido do que a criação do pensamento, o instante se foi e, com ele, eu também. Eu fui um sopro. Eu sou a vida.

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Pintura: “A queda de Ícaro” – Peter Paul Rubens – 1636

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