Velório é de morte

Márcio Magno Passos

A única certeza da vida é a morte. Frase chata, essa. Tanta coisa boa para a gente ter certeza na vida e, volta e meia, vem essa danada da morte incomodar nossa consciência. Tenho uma relação de amor e ódio com ela. Amor porque eu não sou otário de ficar só nutrindo ódio contra coisa tão importante. Imaginem se ela fica ressentida e resolve me buscar antes da hora!

Desde jovem, programei viver 150 anos. Acontece que aprendi com o passar dos anos que isso só será possível se eu combinar tudo com a morte. E para combinar tudo eu teria que me encontrar com ela. É exatamente aí que mora o perigo. Se ela não aceitar minha proposta e se sentir ofendida, estou frito. Encontro com a morte nem morto.

Dizem que morrer é passar dessa para uma melhor. Acontece que todo mundo sabe que até hoje ninguém veio para confirmar. Não que eu duvide. Até muito pelo contrário, levo a maior fé nesse pessoal mais equilibrado do que eu e que sabe tudo que está lá nas sagradas escrituras. O danado do problema é esse meu jeitão de mineiro desconfiado. Se na hora agá nos fosse permitido dar uma olhadinha do lado de lá para decidir se vai ou se fica, ainda compensava arriscar. Mas assim na cara e coragem, sem nenhuma garantia? Oh, coitada!

O problema é que já passei do primeiro meio século de vida. E pela média que estou vendo por aí, é o primeiro meio século e último. Começo a acreditar que estou iniciando a descida morro abaixo. Que sensação danada de esquisita é você perceber que vai viver menos tempo do que já viveu. E que muito dificilmente viverá o mesmo tempo de novo. Vai dar não. Ex-fumante inveterado, cervejeiro juramentado, diabético, vida sedentária atrás dos teclados e assessor de políticos. “Duvideodó” que venha outro meio século.

Toda esta argumentação mortífera que rascunhei até aqui decorre da minha dramática aversão a velórios. Velar morto não é comigo. Não gosto, o ambiente não me faz bem, o clima me deprime e a imagem inerte, fria e desbotada do moribundo não é uma boa lembrança. Só participo de velório em último caso, quando se trata de parente ou amigo muito próximo. Mesmo assim procuro manter uma distância regulamentar do caixão. Das pessoas de quem gosto, prefiro guardar sempre uma imagem de vida. Cheia de vida, se possível. Minhas filhas não gostaram muito da ideia, mas já fiz seguro de vida (não seria seguro de morte?) com o único objetivo de garantir a cremação do meu corpo. Não que eu ache que está chegando a hora. Acredito até que vai demorar muito. Acontece que como a única certeza na vida é a morte, ela não marca hora e seguro morreu de velho.

Nada de velório com vela acessa, coroa de flores, caixão enfeitado, café frio e um monte de gente com cara de sono. Nada de fofoca, choro ou riso. O tempo passando, o sol esquentando, todo mundo rezando para as horas passarem depressa e o moribundo lá, esticado e frio, atazanando a vida dos vivos. Velório só é bom para político pedir voto e os engraçadinhos contarem as últimas piadas. O resto não está com nada. É só sofrimento, fofoca e muito teatro.

A tia de um amigo veio de longe para o enterro de outro sobrinho que a morte, como sempre, buscou antes da hora. Pesando mais de cem quilos, ela chegou ao velório e entrou em prantos na primeira porta que encontrou aberta. Aproximou-se do caixão abraçando a todos que encontrava pelo caminho, a cada passo chorando mais alto até desmaiar teatralmente. Atendida por um médico, ela foi abrindo os olhos devagarinho para ouvir de meu amigo a explicação de que entrara em velório errado.

Ah, não vou desmaiar de novo, não, nem morta – avisou na cara de pau a tiazona.

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