Um Dia de cão

Rosangela Maluf

Domingo. Acordo com o barulho irritante de um pancadão. Como assim, tão cedo, a esta hora da manhã? Acendo o abajur. Não acredito: 6h12! Gente. Manhã de domingo e este barulho irritante, como é possível? Levanto-me, abro as cortinas. O dia claro, o céu azul, mas o sol ainda não surgiu na paisagem. O som irritante continua. Muitas vozes, alguns gritinhos e o som enlouquecedor, insuportável. Ah, esta meninada! Que falta de paciência.

Durmo sempre com as janelas abertas, mas diante do tum-tum-tum surreal, resolvo fechá-las. Puxo novamente as cortinas e vou tentar dormir mais um pouco. Impossível. Viro pra lá, viro pra cá, só irritação. Respiro fundo. Ligo pra Polícia? Será? Que preguiça, meudeus! Como é possível uma festa destas? Superbalada, em plena manhã de domingo. Todas as pessoas pensando apenas em ficar um pouco mais na cama, descansando, dormindo ou não fazendo nada! 

Depois de um tempo, que me parece uma eternidade, ouço uma sirene. 

Alguém deve ter ligado antes de mim, eu penso. Tomara que seja mesmo a polícia. É o cúmulo do desrespeito. A barulheira me tirou do sério. Irritadíssima estou, até agora. Dentro de pouco tempo, o som desaparece. Não ouço mais vozes. Nem gritinhos histéricos. Me levanto novamente e abro as janelas. Silêncio. Ainda bem. Volto pra cama. Quem sabe agora vou pro segundo soninho, aquele de que tanto gosto?

Discussão. Um bate boca em alto e bom som. Vem do andar superior. Bem acima do meu apartamento. Mais esta, o pancadão só é pouco. Já me disseram que a vizinha não bate bem. Profundamente perturbada e muito inconstante com a medicação. Seu temperamento oscila entre a apatia total e a fúria avassaladora, como me parece ser o caso desta manhã abençoada. 

Meudeusdocéu! Estou há poucos meses morando neste prédio. Não conheço mais que três pessoas. Escândalos são comuns, me disse a faxineira, não se assuste quando “o pau quebrar”! 

A discussão continua forte. 

Nessa manhã de domingo, que teoricamente deveria ser calma, os gritos incompreensíveis e muito altos se fazem ouvir. Uns minutos intermináveis se passam. Agora, um silêncio total. Há uma outra pessoa que quase não fala. Pouco responde, não grita. Dizem que a tal vizinha tem uma dama de companhia, uma cuidadora, sei lá. Barulho de móveis se arrastando. Cadeiras? Muito barulho. 

Meu coração dispara. Os gritos continuam. Barulhos surdos como se fossem socos, ou tapas. Nenhuma reação da outra pessoa. O que devo fazer? Receio de que a situação possa ser mais grave do que aparenta. Não conheço ninguém. Se todo mundo está ouvindo, alguém há de tomar uma providência. Espero contando os segundos. Um, dois, três… Coraçãozinho disparado. Nunca tive a menor habilidade com brigas & gritos. Nunca.

Ai, ai, ai. Louça quebrada. O que posso fazer, meudeusdocéu! Me levanto irritada. Vou pra cozinha com o maior mau humor do planeta. E eu, tudo o que queria era um domingo como os outros: calmo, silencioso, feliz! Não é pedir muito, ou é?

Enquanto a água não ferve, coloco nos três pratinhos o patê cremoso para os meus bichanos – sim , domingo é dia de comida boa e não daquela ração de grãozinho que eles comem durante toda a semana.

Faço meu café e volto pra cama. 

Silêncio total. Ainda bem. Respiro fundo, coloco Bach no meu Spotify. Abro o livro que não terminei na noite anterior. Troco Bach por Vivaldi. Melhor assim. Leio enquanto termino o meu café. Estou muito desatenta. Não consigo me concentrar na leitura. Fecho o livro. Desligo o Spotify. Que agonia!

Mais gritos. Mas será possível? Desta vez, barulhos que vêm lá de baixo. Pessoas na garagem. Alguém avisa que é briga entre dois moradores de rua. Ambos bêbados. A esta hora da manhã? Não são ainda nem oito horas. Agora, o sol já mostra sua carinha brilhante. Daqui a pouco preciso tomar banho, me arrumar, tenho uma agenda cheia pra hoje. Preciso sair daqui. Urgente.

Eu disse “garagem”? A discussão agora vem de lá. Chego na área de serviço e ouço com muita clareza dois senhores discutindo. Vozes femininas. As respectivas senhoras discutem também. Duas crianças menores brincam e correm, consigo ver da janela. Dois adolescentes, calados, acompanham passivamente a discussão. Fecho a janela. Fecho a porta. O que será que anda acontecendo com as pessoas? Será uma nova cepa de um vírus solto no ar?

Levo meu celular pro banheiro. Nada de clássicos. Troco Bach & Vivaldi pelos Beatles. Melhor companhia para um dia tão caótico, impossível. Me demoro no banho. Preciso de um descarrego. Cadê o sal grosso? Me arrumo, pego a bolsa, o celular, a máscara. Antes que algo pior aconteça, saio de casa pretendendo voltar só de tardinha.

Respiro fundo, Conto de um até cinco. Retenho o ar e conto de um até cinco novamente. Expiro lentamente. Espero que consiga um Uber com certa rapidez… e que ele (e os outros motoristas) não cancelem a viagem. Espero que o encontro com as amigas seja divertido e alegre como sempre. Acredito firmemente que poderei saborear, com todo prazer, aquela tilápia que espera por mim quase todos os domingos. E o bom vinho branco, chileno. A sobremesa? Vamos ver o que as “meninas” sugerem. Quero tão pouco deste dia. Vamos lá.

Enquanto espero pelo elevador os gritos recomeçam. Barulho de louça quebrada. Não vejo a hora de sair deste inferno. Abro a porta. Aperto o “térreo” e desço. Meu Deus, que dia. Paciência, penso comigo. Muita paciência. Os tempos andam difíceis, muito difíceis. Para todos nós.

Sem muita demora, chega o Uber. 

Fui…

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