Presentes que me dou: Os Livros (10)

Presentes que me dou: Os Livros (10) – Foto: Pixabay
Rosangela Maluf

Quando eu era criança ainda se via, nas cidades do interior, a figura do mascate. Era um vendedor porta a porta que trazia em seu carro os mais diversos produtos. De joias aos mais sofisticados jogos de cama, de mesa, de banho e sem falar nas diversas novidades vindas da capital, tudo podia ser comprado na comodidade do lar.

Uma tarde bateram à porta e eu fui atender. Numa época em que a segurança era total, abri. Chamei a minha mãe e fiz entrar o senhor louro, com o chapéu nas mãos. O que ele vendia de tão especial? Coleções de livros. Da mala tirou doze exemplares, cada um de uma cor. Cores lindas. Cintilantes aos meus olhos de menina. Capas duras, escritas em prateado: O Mundo da Criança. Conversa daqui, conversa dali, negociaram o preço, o desconto, o pagamento em dinheiro (guardado em casa) e assim ganhei a minha primeira coleção de livros. 

Era uma caixa de papelão branco. Seis volumes de um lado e seis do outro. Caixa larga. Esperamos que o senhor fosse embora e fomos, mamãe e eu, abrir a caixa. Meudeusdocéu, aquilo tudo era meu. Poderia escolher por qual cor começaria a leitura. E antes mesmo de iniciar, passei horas encantada com o cheiro, um aroma que me seguiria pelo resto da vida. Foi amor à primeira vista e até hoje adoro o cheiro dos livros.

Não me lembro mais de quanto tempo levei para degustar cada um dos pequenos volumes. Cores tão lindas, clarinhas, iluminadas por uma luz que não se percebia facilmente. Sei que a partir daquele dia não precisaria necessariamente procurar histórias na Seleções do Reader’s Digest que o meu pai assinava e que, até então, faziam minha alegria. Lendo essas revistas me foi despertado o interesse pela leitura “de adulto”.

Algum tempo depois, véspera do meu aniversário de treze ou quatorze anos, passa novamente um mascate. Um senhor de origem grega, sobrenome Sestokas, com um forte e carregado sotaque trazendo nas mãos três volumes, na cor vermelha, escrito bem grande, Jorge Amado. 

Disse maravilhas daquele escritor baiano de quem, até então, eu nunca ouvira falar. As letras cursivas, brancas, sobre aquele fundo quase grená, já eram um chamativo e tanto. Meu coração batia disparado. Nunca pensei que uma só pessoa pudesse escrever tantas histórias. Os dezoito volumes mostravam que sim, além do nome do autor, em letras enormes, em todos os livros.

Era preciso que eu escolhesse entre essa coleção ou o jogo em ouro que a minha mãe havia reservado na joalheria. Estava na moda um jogo de bolinhas, com brincos, pulseira e anel. Joias que me encantaram e desde que soube que seriam o meu presente, passei a sonhar com ele. Me via no espelho com os brincos. Estendia minha mão e sentia o anel. Ah, e a primeira pulseira?

Fiquei na dúvida. Hesitei em fazer minha escolha. Pensei que lá no fundo eu gostaria de ter os dois, mas… Enquanto o preço e o pagamento eram acertados fui ver a caixa que já estava meio aberta. – Posso abrir? – Claro, menina, os livros já são seus. Olhei pra minha mãe que fez um ligeiro aceno com a cabeça. Era um sim. Coração disparado em dobro.

Atirei-me sobre a caixa. Abri e dispus sobre a mesa os dezoito volumes. Acredito que cheirei um por um. Depois levei para a estante que ficava na sala de visita. Coloquei o Mundo da Criança na prateleira de baixo e, na de cima, lugar de honra, coloquei os de Jorge Amado. Que beleza! Que alegria arrumar, limpar e apreciar o meu tesouro.

Não me lembro em que ordem li os livros. Devorava cada um com um apetite insaciável. Os Capitães de Areia me fizeram chorar e contei a história aos meus irmãos menores que ouviam maravilhados, prestando toda atenção. O Mar Morto me apresentou uma história de amor como nunca me havia sido contada antes. Houve tentativas de “deixar pra mais tarde”, Dona Flor e seus dois maridos e Gabriela, Cravo e Canela. Não eram muito indicados para uma menina da minha idade. Claro que não obedeci e tive sim, o primeiro contato com a literatura erótica. Gostei muito, é lógico.  

Não saberia dizer que mundo mágico era aquele que me enchia e me preenchia. Que felicidade poder me deitar e ler. Sempre gostei de ler na cama e qual não foi minha surpresa quando ganhei (ganhamos) uma rede, colocada entre um pé de goiaba e um abacateiro que davam sombra em nosso quintal. O meu pai sabia das coisas. E então, durante o dia, sempre que tinha uma folga, corria pra rede. Brisa, sombra, balanço, goiaba madura, e eu com um livro nas mãos. 

Desde então mantive o hábito que, mais tarde, se tornou um vício e hoje, confesso, padeço de compulsão. Não consigo ficar um dia sem ler. Posso ler pouco, mas antes de dormir tenho sempre à minha cabeceira alguns livros. 

O que seria de mim sem a paixão pela literatura? Não consigo imaginar e em tempos de pandemia, li muito, muito, muito mais do que o normal. 

Reli alguns clássicos muito conhecidos, de autores brasileiros e de outras nacionalidades também. Li publicações recentes, no meu gênero preferido, suspense & policial. Descobri vários autores brasileiros, alguns bem jovens, mas talentosíssimos, de quem fui obrigada a adquirir todas as obras. Autores e autoras.

Fui apresentada à literatura indiana, sofrida, miserável, mas muito terna e emocionante. Me revoltei ainda mais com o sistema de castas, até hoje em vigência no país inteiro, inclusive na capital, onde várias histórias se passavam. 

Os autores asiáticos encheram os meus dias de poesia pela forma singela com que relatam suas histórias. A rígida educação das mulheres, a submissão estimulada pelas avós e mães. O papel sempre humilhante que são obrigadas a aceitar. Os conflitos internos, as frustrações, o casamento, os filhos, a família, a valorização dos idosos, as tradições sempre tão rígidas…

As africanas me deixaram de boca aberta, literalmente! Ao descrever o conservadorismo, o rigor das religiões, a pobreza e a miséria, a dificuldade das mulheres ganharem voz. Três delas mereceram minha atenção especial e procurei conhecer todas as obras de cada uma. Relatos comoventes que me faziam esquecer das horas. Narrativas deliciosas, e eu, sem vontade de parar.

Ainda sob as medidas de restrição, não deixei de frequentar os sebos que tanto amo. Adoro procurar joias raras. Descobrir edições já esgotadas. Adquirir preciosidades de capa dura e pechinchar os preços. Seis livros por cinquenta reais – não sei quantas vezes me dei este pacote de presente! Alguns decepcionantes, mas outras grandes surpresas, daquelas que me fazem beijar o livro quando termino sua leitura.

Continuei firme com um clube do livro do qual faço parte já há algum tempo. Na primeira semana de cada mês, recebo em casa, um “inédito”. Autor pouco conhecido ou desconhecido no Brasil. Junto com a obra, um guia explicativo sobre o escritor, a história e outros detalhes. E ainda um mimo que tanto pode ser uma caneca quanto um marcador de livro; um porta-calendários ou uma bolsinha de tecido para guardar os exemplares em uso. 

E assim vou conhecendo mais e mais autores. Sem fronteiras, dos mais diversos países. Narrativas originais nunca antes imaginadas por mim. Estilos tão diversos, tão inusitados. Finais inesperados e jamais cogitados – não existe mesmo alegria maior. 

É uma descoberta sem limites e uma alegria sem tamanho.

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Por motivos óbvios, não foram citados autores nem títulos de livros. Quem se interessar ou tiver alguma curiosidade, contacte-me!

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A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. As situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade pós/durante a COVID!

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