Foto: Reprodução/Tarot de Marseille Jodorowsky/Camoin - Foto:

Presentes que me dou: As Cartas do Tarot (8)

Rosangela Maluf

Já nem me lembro de quanto tempo faz desde que comecei a me interessar pelo tarô! Morava no Rio, trabalhava no Consulado da França e, em uma tarde, fazendo uma horinha depois do almoço, uma das meninas apareceu com uma caixinha toda colorida, repleta de cartas. Nos mostrou aquilo como se fosse um segredo, algo proibido. Enrolado em um lenço de seda para que ninguém visse. Apesar de todo o mistério, pedi pra ver de perto, tocar nele… Foi amor à primeira vista!

Depois de xeretar algumas livrarias, entre vários outros jogos de cartas que vi, acabei comprando o Tarô de Marselha. Me agradaram as cores. Me encantei com as figuras tão expressivas, observei com toda atenção os olhos e as mãos dos retratados. Não sabia nada de nada. Não tinha menor ideia do que significavam. Nunca soube como jogar, mas mesmo assim, chegando em casa, fui logo encontrando um lenço de seda para guardá-lo em lugar seguro. Era um segredo!

A história nos diz que o Tarô de Marselha é uma das mais antigas versões conhecidas. O estilo de arte, que dominou a Europa nos séculos XVII e XVIII presente na escola de Marselha, possibilitou a simbologia que até hoje, permanece intacta. Talvez seja esse um dos motivos que fazem dele o mais famoso e o mais vendido Tarô em todo o mundo. 

As cartas mantêm, ainda nos dias atuais, a sua originalidade totalmente preservada. As figuras, as cores e seus matizes que, fiéis à antiga edição de 1761, criadas por Nicolas Conver, foram revisadas por Baptiste-Paul Grimaud, em 1931 e seguem até nossos dias despertando curiosidade e encantamento por um dos mais conhecidos e tradicionais dos tarôs.

Penso em recorrer às cartas em busca de uma orientação. Para mim, as duas últimas semanas haviam sido terríveis! Atingir os 420 mil mortos foi um susto. Mesmo esperando por números absurdos, nos doía saber que todas as trapalhadas do governo & Cia, contribuíram sim, para que chegássemos neste patamar tão alto. A gripezinha avançava, fazendo mais e mais vítimas e todos nós, impotentes, nos preservando na medida do possível, mas absolutamente inertes, imóveis, calados, sem fazer nada.

Ainda não havia me refeito da soma, leio estarrecida sobre o assassinato do menino Henry, de apenas quatro anos, pelo padrasto e, com a conivência da mãe. Ainda a esclarecer, julgar e acusar ou não, mas foi um festival de áudios, vídeos, diálogos, fotos, selfies e a carinha do garoto lindo e sorridente estava lá, pra piorar ainda mais o meu dia.

Não gosto de TV, vejo muito raramente, mas quando surgiu na internet o assassinato em uma creche de Santa Catarina, eu quis ouvir nos jornais. Não era possível o que eu acabara de saber: três crianças, menores de três aninhos, uma professora e uma assistente. E o assassino? Um adolescente de apenas dezoito anos. Eu não queria acreditar…

Depois, o Brasil parou consternado com a morte de Paulo Gustavo; foi comoção geral. O artista foi reconhecido pelo talento. Pela versatilidade e também pela generosidade. Quantias enormes foram doadas, sem nenhum estardalhaço, para construção de um hospital do câncer e outras entidades de ajuda. Enquanto isto, pastores de m…, que nunca fizeram nada a não ser extorquir o dízimo dos seus pobres e ignorantes seguidores, clamavam ao céu pelo castigo, pois o casamento do ator com um médico mineiro era coisa do demônio. Pode?

Parei de assistir o pouco de TV que via. Procurei não ler por uns dias as notícias na internet, ou melhor, só lia os títulos, sem me aprofundar em nada.

Surge, ou mais propriamente, ressurge a guerra entre Israel x Palestina. Bombas, foguetes, destruição dos dois lados, prédios desabando, crianças feridas, ensanguentadas. O mundo inteiro assistindo a tragédia. Que tristeza. Em pleno século XXI ainda há guerras e que continuarão por muito tempo beneficiando a indústria bélica, os governos beligerantes e ceifando milhares de vidas, de jovens militares, muitos civis, idosos e crianças.

Começa a CPI, transmitida ao vivo, pela TV. Nos poucos minutos que vi não pude evitar a ânsia de vômito. O filho do presidente, enxerido e despreparado como sempre, faz acusações de baixo nível (aprendeu com quem?) contra o outro lá, que de santo não tem nada. Macaco velho, safado, cheio de incriminações, mas que entrou no jogo do senadorzinho!

Outra criança assassinada, Gael. A mãe sendo a mais provável culpada. Meu deusdocéu, o que está acontecendo com o mundo? O que tudo isto tem me afetado? Mexido comigo. Não sou forte o suficiente? Pensei que seria mais isenta, tá difícil. Cada dia pior…

Em apenas dois anos, a ocupação irregular na Amazônia cresce 56% e paralelo a isto, as comunidades indígenas, sem o apoio da Polícia Federal, encontram-se à mercê dos bandidos, dos garimpeiros, e pasmem: de alguns indígenas comprados pelo garimpo ilegal e contrários a seus irmãos de sangue. 

Eva Wilma se foi após uma longa luta contra o câncer de ovário. Uma das mais brilhantes e completas atrizes do nosso cinema e da nossa televisão. Bruno Covas, de apenas 41 anos, também se vai depois de, corajosamente, enfrentar um câncer de estômago por dois longos anos. Foi um grande. Foi um lutador. Fez história como um político adepto ao equilíbrio, ao diálogo, e mesmo doente foi um gigante contra a pandemia no estado de São Paulo.

Na África, uma jovem mulher dá à luz a nove bebês, por processo natural, sem nada de inseminação artificial & outros procedimentos. O que será isto? Como é possível,  n o v e  bebês, de uma só vez!

Mc Kevin despenca de uma varanda no quinto andar de um luxuoso hotel na Barra da Tijuca. Outra morte tão jovem e ainda sem resposta.

Antes que a semana comece, volto ao lenço de seda que envolve o meu tarô. Raramente tiro cartas para mim, só mesmo quando não consigo – de jeito nenhum – elaborar minhas dúvidas e questionamentos. Prefiro canalizar minha energia para quem me procura. Quem efetivamente precisa de uma orientação para melhor se colocar diante de um problema, uma dúvida. 

Hoje eu quero saber o que posso fazer para me sentir menos afetada por este caos diário e como sobreviver neste mundo sem previsão de melhora. Vamos lá! Peço, em silêncio, ajuda ao meu guardião, meu mentor espiritual, meu anjo da guarda, venham todos em meu socorro, please!

É preciso relaxar a mente, mas não consigo.  As imagens me chegam como num filme. Todas as notícias de uma só vez. Sinto uma leve alteração em meus batimentos cardíacos. A boca está seca. Não, assim não vai dar; mas eu me orgulho tanto de ter razoável controle sobre as minhas emoções! Cadê o controle? Respiro fundo tentando me acalmar, mas não dá.

Espalhadas na mesa, as cartas se movimentam, dançam lentamente. Esfrego os olhos e olho de novo. Todas paradas. Imóveis. Vejo cores iluminadas, brilhantes, piscando? O que se passa comigo? O silêncio do final de tarde é interrompido por uma freada longa e um baque surdo. Certamente uma batida na rua, aqui em frente. Não tenho curiosidade. Não quero ver. Não quero me desequilibrar ainda mais. Não quero mais ajuda do tarô, quem sabe amanhã. Nem tudo acontece do jeito que esperamos… Calma. Menos ansiedade. Nada de fazer uma tiragem mal feita, inadequada, com resultados duvidosos.

Vou tomar um banho quente. Um banho de sal grosso. Alecrim. Um chá de camomila com açúcar mascavo. Isto mesmo. Outro dia será outro dia, voltarei a consultar o tarô e aí, estou certa, ele me responderá. Conto com ele sempre que preciso, é um presente em minha vida, mas agora não vai dar.

Hoje não…

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Os fatos aqui citados neste conto não seguem uma ordem cronológica.

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A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. As situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade pós/durante a COVID!

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