Presentes que me dou: Meditação (7)


Rosangela Maluf

A manhã radiante enche de luz o escritório onde instalo meu pequeno altar. O sol brilha forte. O céu, sem nuvens, é de um azul absurdamente intenso. Me preparo para a primeira meditação do dia. Momentos só meus, de entrega, de receptividade. De confiança ilimitada e da certeza de que sairei um pouco melhor e um pouco mais forte após esta prática. É assim, todas as vezes, todos os dias.

Sempre gostei de rituais e, em plena pandemia, não tem sido diferente! Afinal, muito mais tempo tenho agora para fazer as coisas de que preciso. Meditar é uma delas. O ficar comigo, em silêncio, me conduz ao meu “eu interior”. Me equilibra, me acalma, me faz muito bem.

O ritual que sigo serve como apoio para alinhavar, pouco a pouco, a experiência espiritual que desejo ou que necessito naquele momento. É o ponto de partida para a minha prática diária. Muito simples. Nenhum compromisso com o rigor dos passos sugeridos ou recomendados pelos livros. Escolho os pontos que mais me agradam e com os quais me identifico. 

Fecho as cortinas. No centro do pequeno altar, ele, o Buda. Coloco ao seu redor as sete tigelinhas. Cada uma com um conteúdo específico. Cada uma com seu significado particular: água de lavar, água de beber, perfume, alimento (arroz), luz (velas), incenso, flores. Ao lado repousa a tigela tibetana. Dela tiro o som inacreditável que inunda e preenche todos os espaços. Outras velas já iluminam o ambiente enquanto espalho varetas de incenso de mirra, absurdamente relaxante e agradável. Tudo com muita calma e concentração, como devem ser os rituais. Às vezes deixo um mantra sendo cantado em meu celular, outras vezes prefiro o silêncio total.

No banquinho, pertinho do chão, me sento em posição de lótus, mantendo durante todo o tempo a coluna ereta e a respiração consciente. Inspirar. Expirar. Inspirar profundamente. Reter o ar. Expirar lentamente. Neste início gosto de ter em mãos o japamala, onde uso cada uma de suas 108 contas para agradecer. Não pense que é muito: um coração verdadeiramente agradecido terá muito mais que 108 motivos para ser grato, todos os dias.

Agradeço pela vida, pela saúde, pela alegria. Pela disposição, ânimo, energia. Pelo desapego gradativo que tenho alcançado. Agradeço pelo teto onde me abrigo, por ter onde viver. Pela cama, pelos lençóis macios, os travesseiros, o cobertor nas noites de frio. Que bênção poder contar com um banho quente. Ter comida quando sinto fome. Água para matar-me a sede. Então me lembro de quanta gente não tem acesso ao básico, ao essencial. Quanta fome se instalou por aí e continua a atingir mais pessoas, idosos, crianças, quanta dor. Mais grata ainda me sinto por ter muito além do que necessito. 

Agradeço por ter visão, audição, olfato, tato e um paladar privilegiado, que se alegra com todo e qualquer sabor. Todos os sistemas funcionando perfeitamente. Ótima saúde. Exames recentes, todos normais. Pressão normal. Nenhum medicamento. Nenhuma restrição de nenhuma espécie. Entretanto, não me esqueço do câncer que tive e que me trouxe lições importantes. Procuro me lembrar dos intensos momentos de aflição e com toda calma, respiro e mais uma vez, agradeço. Profundamente grata por ter passado por tanta dor. Superado e conseguido tirar daquilo lições para a minha vida. Sinto-me infinitamente agradecida. 

Tenho um sono abençoado. Durmo muito e muito bem. Não sonho quase nunca; raramente me recordo do que “sonhei”. Alguns flashes de cenas vivenciadas, e só! Sempre acordo disposta, alegre, de bem com a vida. Se posso, durmo de novo, aproveitando o sono da manhã que é o que mais gosto. Não é todo mundo que pode se dar a esse pequeno prazer…

Agradeço a liberdade de viver só. Fazer o que quero, na hora que quero. Sem compromissos, a não ser comigo mesma. Minha própria companhia é seguramente, a melhor. Quem preza a solitude sabe do que estou falando. Não precisar de ninguém é um sentimento mágico que só descobrimos quando amamos intensamente quem somos, o que temos internamente e o que conseguimos vir a ser. Entretanto, sei que partilhar e compartilhar também pode ser bom…

Cuido da minha mente. Dentro do possível, me sinto equilibrada e estável, ainda que estejamos em meio a este caos, sem controle e sem previsão de término. Escolho todos os dias viver da melhor maneira. Nem sempre consigo, mas é a minha busca. Procuro deletar o que me faz mal, o que pouco me acrescenta ou que não me acrescenta nada. Não permito (e este é o exercício mais difícil) que nada nem ninguém ameace o meu equilíbrio duramente perseguido…

Agradeço pelos gatos que me fazem companhia. Animais de estimação serão sempre bem-vindos. Essa conexão com o mundo animal constantemente nos ensina alguma coisa boa. Cuido deles com carinho imenso e eles me retribuem na medida certa. É uma alegria ter os três bichanos em meu convívio.

Agradeço pelas minhas plantas, meus vasos. A alegria diante de cada novo raminho que surge, lembrando-me de que a vida recomeça todos os dias, das mais diferentes maneiras.

 Agradeço pelo meu violão, que me permite cantar quando estou alegre. Ele me desperta saudades, me ancora a sentimentos que são só meus. Posso cantar, recordar, me emocionar, chorar se eu quiser…

Agradeço pela minha pequena biblioteca. Como sou feliz por gostar tanto de ler. Nesta pandemia me pergunto, o que será das pessoas que não leem. Como sobrevivem com tanto tempo sobrando? Agradeço por poder comprar meus livros. Ler o tanto que quero. Do jeito que quero, os mais diversos assuntos. Quase um vício incontrolável, mas benéfico e extremamente prazeroso. Poucas ações que completam tanto… 

Agradeço a oportunidade ímpar de poder escrever o que sinto. Aquilo que vejo e ouço ou o que apenas imagino, invento. Criatividade. Escrever e ser lida é uma alegria imensa. Compartilhar sentimentos, experiências, fantasias. Fazer com que as pessoas se identifiquem, que sonhem junto comigo. Conexões preciosas são estabelecidas assim, entre mim e o leitor. Agradeço. Agradeço. Agradeço.

Como não agradecer pelas pessoas tão especiais e tão queridas que já se foram? Meu coração transborda pelas bênçãos recebidas. Pela família onde nasci, cresci e me formei como ser humano. Pelos pais generosos, compreensivos e carinhosos que tive, ambos falecidos. Pelos dois irmãos que também já se foram. Pelos irmãos que ainda vivem, as cunhadas que mais parecem dividir conosco a mesma origem, tamanha afinidade de almas. Sobrinhos e sobrinhas, todos muito queridos, como se estivéssemos vivido juntos em outras épocas, em outros tempos. Tios, tias, primos, primas, amigos e amigas. Procuro me lembrar de todos que já se foram e me conectar com eles. Para cada um, corro uma conta no japamala. As 180 contas vão sendo reduzidas, pouco a pouco. São muitas perdas em nossas vidas e relembrá-las com profunda gratidão nos faz muito melhores do que apenas chorar de saudade e lamentar as ausências.

Infinitamente grata pela minha riqueza maior: os filhos. Continuação do que sonhei e realização do que pensei poder ter um dia. Pedaços de mim. Corretos, de bom caráter, corações transbordantes de luz, muito amados. Agradeço aos homens da minha vida. Desde os primeiros namoradinhos até aqueles que fizeram de mim a mulher que sou hoje. Àquele que me proporcionou a alegria de ser mãe, dedico pensamentos agradecidos: ao pai dos meus filhos, obrigada pelo tempo de convivência privilegiada. Foram vinte e dois anos de muito amor. Muito carinho por ele, até hoje. Num segundo relacionamento, agradeço os dezessete anos vividos. Conheci a paixão avassaladora, depois o amor, a cumplicidade, a amizade. Sou igualmente agradecida pela descoberta de um mundo novo, vida na natureza, terra, plantas e bichos. Muito carinho por ele também. 

Só tenho a agradecer, a eles e a todos os outros que passaram por mim conduzindo-me, pouco a pouco, até ser o que sou. Compartilhar a mesma estrada, vislumbrando o mesmo horizonte. Lembro-me sem saudades, mas com muito carinho e dirijo meu pensamento a cada um deles. Apenas agradeço. Sou muito grata, muito mesmo.

Agradeço por ter me aposentado, cheia de saúde e disposição para a vida. A certeza do tempo precioso que ainda tenho pela frente. Sim, ainda terei muito o que fazer, muito. Aproveito esse descanso merecido. Ocupo todo os meus momentos com o que me dá prazer, com tudo aquilo que me enche de sorrisos e transborda. Acho a vida maravilhosa. Me sinto realizada, plena, cheia de luz, de paz e ainda, de sonhos. Muitos sonhos, sem pressa para realizá-los. Tenho o tempo a meu favor. Necessito apenas de saúde, nada mais…

Como todo ser humano, sou cheia de defeitos, de imperfeições. Entretanto, a cada dia busco diminuir em meu coração a tristeza, o desconforto. Evito o mal estar causado por pensamentos não construtivos. Esta é a minha busca constante, nem sempre é fácil, mas é uma tentativa sem fim…

Inspiro. Expiro. Termino os agradecimentos. Desligo o mantra. Agora prefiro apenas o silêncio. Concentração total na respiração. O entra e sai do ar em meus pulmões. Se outro pensamento surgir, irei identificá-lo e como num sopro, vou deixá-lo ir. Se, ainda assim, outros pensamentos chegarem, assistirei a todos eles, deixando-os seguir em frente, sem reter nenhum. 

E assim vou me relaxando. Não marco tempo. Não me preocupo com os minutos. Enquanto estiver bom, eu continuo. Cada vez mais calma, respirando consciente. Alegria plena, sintonia fina. Busco meu interior mais profundo, e o encontro lá, onde sempre está quando procuro por ele. Agradeço mais uma vez pela oportunidade de começar a cada dia. Sempre bom poder e saber recomeçar. Sempre.

N a m a s t ê !

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A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. As situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade pós/durante a COVID!

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