Os Olhos Claros de João

Rosangela Maluf

Continuação

Parte três

Cheguei em Milagres. Fany foi me pegar na rodoviária. Ela e a neta, filha de Dulce. Tão engraçadinha, perguntadeira, curiosa, linda a menina, mas chatinha – eu não tinha mais paciência para lidar com crianças, ainda mais pequeninas assim. Quatro anos de pura perguntação, não nos deixava conversar direito.

Minha irmã, já sei tudo sobre o tal do homem. Você se lembra do Seu João? Aquele do Mato Cerrado? Do café. Lembra sim. Que a mulher dele perdeu o primeiro filho e ele de triste ficou mais de mês bebendo sem parar. Foi encontrado quase morto, lembra? Passou tempos no hospital municipal, sem memória e sem fala. Ficou foi tempo sem aparecer. Quando saiu foi direto para a fazenda. Sumiu de Mato Serrado. Ah, claro que nós contamos para você. 

Quando ouvimos falar dele de novo? Quando ele tirou uma menina da zona, engravidou a coitada e levou a pobrezinha para fazenda. Dizem que acabou se casando com ela. Foi um falatório, não se falava noutra coisa aqui na cidade. Fazenda dele, sabeondeé? Perto da sua, pros lados de Solidão. Então, foi só enchendo a mulher de filho, uma escadinha. Lembrou? Pois é. Ele é o comprador da terra sua. Já falou na barbearia do Jonas que vai comprar mesmo a fazendinha. Tá pertinho das terras dele. Se eu fosse você, crescia o preço; o homem tem interesse por demais nas terras, Sá!

No dia seguinte fui ao cartório. Falo com um, falo com outro, cumprimento amigos, velhos conhecidos de Milagres. Contudo, saio de lá sem os papeis de que eu tanto precisava. Peço pra Seu Honório me levar até a fazenda do Seu João. Fany vai junto. Poeirão daqueles, bem vermelho, parecendo nuvem. Fico triste com o que vejo pelo caminho. Tudo tão seco, tão diferente do tempo em que tocávamos a fazenda. Sempre difícil, é verdade, mas agora, quase impossível. Fany não para de falar. Conversa comigo, dá ordens para o Seu Honório e eu caladinha no meu canto, pensando, pensando…

Voltamos no mesmo pé em que viemos. Seu João não estava. Deixei com Corisco o telefone da casa de minha irmã. Que ele me ligue quando chegar, falei para o ajudante. Careço de falar com ele, é urgente. Diga que é a dona da Solidão, estou aqui só até amanhã e depois volto para a capital.

Voltei para a capital e nada de falar com o Seu João. Desanimei. Tive a impressão de que ele desistira do negócio, mas não quisera falar, sei lá. Vai saber o que se passa pela cabeça de um matuto desses. Matuto nada, dizia Fany, Seu João tem estudo. Ficou assim depois da morte da mulher, mas dizem que tem até diploma de doutor, doutor no estrangeiro. Diploma, sei.

Uma tarde, recebi um recado escrito por Alzira. Finalmente iria me encontrar com o italianão. Peguei com São Judas Tadeu; que ele encaminhasse um bom término para o negócio. Eu precisava tanto e para o homem também haveria de ser bom. As terras já coladinhas às terras dele. Valei-me, meu santo das causas impossíveis. Voltei para Milagres. Mandei Seu Honório até Mato Cerrado dar o recado pro homem. Se ele não estivesse, que deixasse o bilhete com Corisco.

Me arrumei um pouco mais do que de costume. Passei um perfume qualquer, só um pouco, bem pouco. Passei batom. Coloquei um vestido pouco usado. Estava quente e achei que ficaria mais bem apresentada. Afinal, eu iria fechar um negócio. Peguei o carro de Fany. Vou sozinha, é coisa entre mim e ele. Precisa vir junto não. Daqui a pouco estou de volta.

Corisco veio abrir a porteira e logo o Seu João aparecia na varanda. Tirou o chapéu, abriu o portãozinho e desceu as escadas. Ficou parado enquanto eu estacionava o carro embaixo dos hibiscos. – Entra, Dona Heluísa, a casa é sua e o café já está até estava servido. – Sinhana havia deixado a fazenda grande e viera para dar uma ajeitada em Mato Cerrado. Discreta, saiu para o terreiro com a desculpa de olhar umas quitandas assando no forno de barro. Dali deve ter sumido de vez, pois não a vi mais.

Conversamos o que tinha pra ser conversado. Ele anotando numa cadernetinha tudo que deveríamos fazer nos próximos dias: papelada, assinaturas, advogado, banco, cartório, essas coisas. Ao contrário do que eu esperava, demoramos muito mais tempo que o previsto e nesse vai e vem na boleia com o Seu João fomos nos tornando mais próximos. Confidenciando algumas lembranças de nossos passados, alguns segredos, algumas esperanças. Dia após dia, durante duas semanas, nos vimos todas as manhãs e todas as tardes. À noite, cada um em sua casa, mortos de cansaço. Foi naqueles dias tão cansativos que comecei a gostar de João.

Parte quatro

Era tão bom conversar com ele. João tinha um jeito diferente e quando me chamava de Dona Heluisa eu não conseguia conter o riso. A gente conversava sobre tudo e eu aprendia tanto com ele. Nunca tocava no nome da mulher nem dos filhos. Também nunca perguntei, nem me interessava saber. Uma única vez me apresentou Romeo, filho mais velho que cuidava dos seus negócios. Nunca mais o vi nem na fazenda nem na cidade. Uma única vez perguntou-me o nome das minhas filhas: Alice e Elisa, eu disse. Bonito! Bonitos nomes, ele falou.

Quando toda a papelada enfim ficou pronta e finalmente tudo se acertara, pensei em voltar para a capital. Achei o João calado naquele dia, sempre parecendo que iria abrir a boca e dizer algo. Seria muita ingenuidade minha imaginar que pudesse ser um assunto mais sério referente a nós dois; afinal, nada se passara que não fosse apenas cordial, comercial e normal. Mas sabe que lá no fundo eu bem que queria ouvir uma declaração de amor?

Depois que conheci o João e nos aproximamos para resolver a compra das terras eu voltara a sentir cheiros. Primeiro, do café torrado em casa de Fany, depois o cheiro do pequi no mercado de Milagres e pensei comigo, se sinto cheiro de novo estou voltando à vida outra vez. Será que estou apaixonada por este italianão? Desde que o falecido se fora, meu olfato se foi junto e fiquei uma mulher sem cheiro de nada.

Uma tarde fria de julho, já com toda a papelada pronta e assinada e o dinheiro depositado em minha conta, achei que o fim de um negócio como aquele merecia uma celebração. Comprei uma garrafa de vinho, levei umas coisinhas fatiadas, uns pães e fiz uma surpresa para o João, sem avisar. O sol começava a se esconder banhando tudo de um alaranjado tão lindo. João ficou muito feliz. Não sabia o que fazer para me agradecer e tentava a todo custo me agradar. Parecia um adolescente, assim que nem eu, com o coração saindo pela boca.

Foram poucas palavras, muitos carinhos. Beijos entre silêncios e suspiros. Ainda dávamos conta do recado e como foi bom! Me senti viva de novo, quase não trocamos palavra, mas o olhar de João dizia tudo. Não dormi na fazenda, voltei dirigindo, feliz e cantando. Quando cheguei em casa todos já dormiam e eu não queria contar para ninguém. Depois de tantos anos eu tinha um segredo só meu. Só meu. E de agora em diante, nada de Seu João, só João!

Prática, resolvi na manhã seguinte voltar para Beagá. Mandei recado pra ele que não se preocupasse, estava tudo bem e logo eu voltaria para passar os últimos dias das férias de julho. Minha filha havia ligado e precisava de mim. Detalhes da formatura.

Durante esses poucos dias fora de Milagres recebi várias cartas de João. Nada de computadores, e-mails, telefonemas – cartas, com cheiro de papel, envelope cheirando a cola, os selos. Ficava imaginando ele na cozinha, escrevendo na mesa grande, pensando no que me dizer, indo ao correio postar todas aquelas doces mensagens. Ah, João me parecia tão sincero, mas e o medo que eu sentia? Era muito maior que sua sinceridade. Acredite! Junto com as cartas, me chegavam fotos dele ainda criança, com os pais, em Carmona, na Itália. Achava tudo tão engraçado, nem parecia que toda aquela história se passava comigo. O certo é que não voltei para o final das férias, embevecida com as cartas, as fotos, o cheiro do papel que agora eu voltara a sentir. E respondia a todas elas. Tirava do vasinho uma violeta, e com durex pregava a florzinha no papel. Também enviei uma foto, mas me senti tão ridícula. Imagina se as meninas soubessem destas coisas. Eu morreria de vergonha, por certo!

Casamento eu não queria, nem João poderia – afinal ele tinha mulher e filhos. Amante, eu não aceitava. Foi um custo me deitar com ele sem ter nenhum compromisso formal. O que eu queria então? Queria que ele viesse a Belo Horizonte, que se hospedasse em um hotel bem simples e eu me encontraria com ele todos os dias, na hora em que ele quisesse. Mas João achava que só isto era pouco. Resolvemos que uma semana viajando poderia ser bom pra nós. 

Fomos para uma praia tranquila, sem crianças gritando, sem sol forte demais, água morninha e cada final de tarde mais lindo que o outro. Eu cuidei de tudo e ele cuidou das mentiras que falaria com a família. Com as meninas foi bem mais fácil. Tinha uma grande amiga morando em Guarapari e para me encontrar com ela eu viajaria no próximo sábado. Por poucos dias.

Foram dias e noites fantásticas dos quais me lembrarei com profunda emoção para o resto de minha vida. Cada vez nos gostando mais, começava a ficar difícil encontrar uma solução para nós dois. Não poderíamos simplesmente chegar para as pessoas e contar a verdade, o que se passava entre nós. Também não poderíamos assumir nada. João não era um homem livre. Livre era eu, que também não pretendia me prender. Queria ficar assim, achando tudo tão moderno, tão bom. Comecei a gostar da minha imagem no espelho, passei a me olhar com mais gosto, mais amor, minha autoestima, finalmente, aumentava dia a dia.

Quando voltamos dos dias passados em Jacaraipe achei que seria bom ter uma conversa franca com João. Olha, João, não acho que vale a pena, sabe. Sou franca. Não quero lhe causar tristeza depois. Não sou a companhia ideal que você gostaria que eu fosse. Veja bem, estou só há seis anos e nesses anos todos, o meu coração foi se fechando aos poucos até se fechar por completo. Trancou por dentro. Não que eu gostasse assim tanto do ex-marido, você entende João, mas achei uma ingratidão grande por demais e fui ficando com o pensamento só naquilo, só na ida dele, nas meninas e eu. Sozinha, com duas filhas. Foi fácil não. E daí, fiquei assim, uma mulher seca, sem vontade, sem alegria, sem saudade. Sinto saudades não. Lembrança boa ou ruim, nenhuma diferença me faz. Minha vida é como um livro de gravuras, umas coloridas outras em preto e branco e eu vou passando as páginas. Mas saudade, de ter vontade de voltar ao passado, por que foi bom, por que foi gostoso, tenho não. De nada. Vejo fotos, e nem parece que sou eu. Não me vejo em lugar nenhum. Como se nunca tivesse guardado um sorriso, uma imagem que me fizesse feliz.

Não me lembro mais nada de bom, nem da minha infância, de pai, de mãe, da fazenda velha, das tardes de calor bravo, o banho no rio, nada eu lembro com gosto, lembro só por lembrar. A professora, as meninas da escola, as festas, as procissões na igreja, o canto coral! Tá tudo registrado, sabe. Mas só isto. Casamento, nascimento de filho, morte de parentes, nada. Eu vivo numa bola de vidro, uma redoma, é isto – eu vejo tudo e todo mundo me vê, mas é só. E tem mais, o futuro me assusta. Tenho medo, muito medo de ser coisa passageira, assim, só um fogo de palha e depois, o que será de mim depois? O que será de nós, se não der certo? E se der certo, como é que vamos fazer? Vejo solução não.

Olha só, presta atenção. Outro dia mesmo lá na praia, nós dois deitados na areia, começou a chover, lembra? A chuva caia assim, comprida e eu fiquei ali pensando na minha vida, querendo sentir saudade de nós dois, daquele momento, de alguma coisa, sem conseguir. Querendo sentir cheiro da chuva, da areia molhada, a maresia, mas eu não podia, não conseguia. Aí, João, você me fala essas coisas todas. Fico sem jeito. Sou mulher acostumada a ouvir coisas assim não. Fico sem jeito, fico envergonhada, me sinto mal, mal mesmo. Mas também reconheço, culpa você não tem! 

Nas coisas do coração a gente não manda. Mas não posso mentir nem deixar que você se engane a meu respeito.

Parte cinco

Ontem fiquei pensando enquanto você dormia no sofá. Que diacho, sô. Nesta altura da vida, o que este homem tem que me dispara assim o coração deixando ele acelerado, batendo que nem doido. Como pode uma mulher na minha idade! Que resposta? Resposta do quê? Fiquei ensaiando, falando baixo um discurso para dizer a você que minha resposta é não. Acho que já chega. Melhor parar por aqui. Poupar sofrimento para nós dois, João.

Os olhos de João se fizeram mais claros ainda e dentro daquele azul eu quis mergulhar. Dizer que nada daquilo era verdade. Que eu faria o que ele quisesse. Que pouco me importava se fosse ilegal, imoral, inadequado, proibido, censurado. Ficamos em silêncio por longo tempo. Eu havia falado demais, muito mais do que ele precisava ouvir e ele nada dissera. Pegou-me pelas mãos e fomos caminhando.

Do aeroporto de Vitória desci na Pampulha e João seguiu para Montes Claros, ficava mais perto de Milagres. Viemos em silêncio. Olhares cheios de carinho, mas nem uma palavra sobre nosso ponto de interrogação.

Venho marcando um xis no calendário da minha agenda.

Faz 32 dias que não falo com João. Mais de mês que voltamos das férias. Às vezes me arrependo de ter sido tão direta. Poderia ter sido mais flexível, deixar as coisas como estavam. E se ele não me procurar nunca mais? Se eu estiver perdendo a maior chance da minha vida? Tantas perguntas sem respostas me deixam com dor de cabeça. Abaixo o som da TV. Vou até a cozinha. Preciso de uma neosaldina. Procuro a caixinha de remédio. Na última gaveta. Por debaixo da porta alguém empurra um envelope. Pego curiosa e agradecida ao seu Antenor que me coloca também uma revista de fofocas. Nem abri a porta pra agradecer. Cheiro o envelope, leio o destinatário e o remetente: João!


João!

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