Uma certa mulher ao espelho

Rosangela Maluf

Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Envelhecida, trago no rosto profundas rugas. Tenho o semblante pesado e tristonho. Essa mulher sou eu? Acendo a luz e me sinto ainda pior. O que vejo não me agrada. Levo um tempo tentando observar melhor as marcas que o passar dos anos tem deixado em mim. Respiro fundo, mas não choro. Minhas lágrimas secaram. Faz tempo não choro mais. Nem em filmes tristes. Nem por músicas românticas. Nem em casamentos ou enterros. Nada mais me faz chorar.

Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Sempre vestida de cinza. Total indefinição entre o alegre e o triste, entre o ânimo e o desânimo. Engordei muito com o passar do tempo. Vingo na comida o prazer que me foi negado de ter uma vida feliz. Com o sobrepeso terminei por desenvolver hipertensão. Tomo remédios. Com a alimentação sem controle desenvolvi problemas de colesterol e triglicérides. Tomo remédios. Não faço academia, detesto qualquer atividade física. Odeio transpirar. A falta de exercícios me leva a dificuldades para dormir. Tomo remédios. A falta de lubrificação nos joelhos me causa uma dor na perna direita, do lado esquerdo tenho uma leve artrose no quadril.  Tomo remédios. Ah, e apesar de não gostar de doces, tenho uma taxa de glicose que oscila entre o normal e o máximo permitido.

Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Sem autoestima. Sem amor próprio. Olho pra minha história e nada me traz saudade. Só lembranças, umas boas, outras ruins, nada mais. Não consigo ser grata à vida. Não sinto gratidão por nada, que motivos eu teria? Não tenho grandes qualidades, sou um ser humano absolutamente normal, distante, frio e egoísta. Não posso por isto ser atacada por ser assim tão sincera e franca. Poucas coisas me abalam, me tiram do sério. O tempo ensinou-me a encarar meus próprios defeitos; acato-os sem o menor pudor. Sou rude comigo tanto quanto a vida também me tem sido dura. Difícil. Penosa.

Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Sem vaidade, sem atrativos, sem voz ativa pra nada. Uma mulher que viveu sozinha a vida inteira. Nunca foi amada e nunca amou ninguém. Nenhuma atração pelo sexo oposto. Senti sim, admiração profunda pelo meu único chefe, em mais de vinte anos. Nós dois trabalhávamos na Biblioteca Municipal. Ele o diretor e eu uma bibliotecária. Um homem discreto, elegante, inteligente, culto. Uns olhos verdes absurdamente lindos acendiam aquele rosto. Eram mesmo dois faróis. Mas nunca fui além da admiração. Algumas vezes olhei com certa curiosidade para o zíper de sua calça jeans. Poderia haver algum volume. Ele teria genitais? Eu me perguntava. Acho que não, eu mesma respondia. Nada me atraía, em ninguém. Nada. Nunca soube o que foi um beijo na boca. Beijo de língua. Ouvia falar, as colegas da biblioteca contavam casos apimentados, todas davam gargalhadas e eu ouvia, sem nada comentar. Nenhuma delas acreditava em mim. Eu deixava por isto mesmo, que elas continuassem a pensar que eu escondia alguma coisa interessante. Algum segredo. Um mistério!

O espelho me mostra uma mulher indiferente. Indiferente e fria. Fria, distante, seca. Mas essa mulher que vejo não é tão infeliz quanto poderia ser. Órfã, morando com uma tia solteirona, católica, apostólica, romana, desde muito nova aprendeu que a igreja é onde a paz do senhor habita. Quanto mais rezava mais se dava conta de que havia sim, um certo exagero entre a tia, o padre e as integrantes do Apostolado da Oração. Quando descobri nos livros meu prazer maior, entendi, com muita clareza, que a ignorância também era um dos componentes daquela comunidade onde eu vivia.

Essa mulher que vejo no espelho, sou eu. Eu que consegui, a duras penas, estudar. Escolhi biblioteconomia porque adorava os livros. Só eles me levavam para onde jamais iria sozinha. Só eles me contavam segredos que jamais seria capaz de imaginar. Apenas eles me detalhavam relações amorosas que desconhecia e continuo ainda sem conhecer. Com os personagens eu me identificava: se não, brigava com eles, xingava agindo como se tudo fosse normal, natural e absolutamente real.

Essa mulher que vejo no espelho se formou. Cuidou da tia já bem velhinha até que ela se foi. Entregou a casa onde viviam, mas conseguiu um lugar decente pra morar. Estudou para o concurso público e conseguiu o emprego que lhe garantia uma vida sem muito sofrer. Não era bom, mas também não era ruim. Nunca conseguiu estudar inglês. Via alguns livros, não os entendia, mas lia assim mesmo. Também não estudou espanhol – era mais fácil para entender, mas não pra falar. Diferentes. Entretanto, essa mulher – que sou eu – conseguiu terminar um curso de computação, outro curso sobre como usar a internet, como ingressar nas redes sociais e tudo que pudesse facilitar seu acesso à tecnologia. Em meu trabalho usava todo o conhecimento para facilitar o tempo enorme que passava catalogando e classificando dados, fotos, informações. Junto aos frequentadores da biblioteca orientava as buscas mais diversas, facilitando assim o acesso dos interessados. Sempre muito paciente e disponível, acreditava fielmente na dignidade da pessoa humana, tratando igualmente a todos.

Estamos no mês de janeiro. Faz muito calor. Ainda bem que temos ar condicionado em todos os andares da biblioteca. E lá, onde ficam a minha mesa e armários, encontra-se o local mais fresquinho do prédio. Estou feliz. Houve um sorteio de Natal. Participaram todos os funcionários de todos os níveis, um sorteio com muitos prêmios fazendo a alegria de mais de cinquenta integrantes da nossa equipe.

Essa mulher no espelho, agora poderá sorrir. Foi premiada pela primeira vez na vida. O prêmio não poderia ser mais significativo, um computador. Não sei ainda tudo que ele será capaz de fazer, mas é meu.

Posso pesquisar, ouvir música, ver filmes, conversar com as amigas pelo vídeo, usar o whats que tenho no meu antigo celular. O Celinho do CPD diz que vai me ensinar tudo. Que eu vou viver uma nova fase em minha vida. Que o Dell XPS-7390-A10S (ele lê as especificações) vai me liberar para o mundo e fala sobre tudo que me será permitido fazer. Tudo. Terei acesso às receitas, aulas de tricô, crochê, posso aprender a tecer tapetes, quem sabe aprender flauta doce (que sempre tive vontade de tocar). Poderei assistir às missas, ver e ouvir coros de música sacra de que gosto tanto, orquestras sinfônicas, espetáculos de circo, mágicos fazendo mágicas, acesso às TV’s de outros países, filmes antigos, séries nem sei o que mais.

Um mundo novo se abre diante dos meus olhos. Terei uma vida ocupada com situações onde eu serei a personagem única; situações reais, de minhas livres e totais escolhas: eu é que decidirei o que fazer ou não fazer. Eu mesma selecionarei minhas preferências. Os assuntos. Quem quero ver. Que programas me interessam. O que não quero jamais acessar. E ainda posso ligar o computador à TV, ou seja, posso ver tudo na tela grande. Os fios, os cabos, todos os complementos já estão com Celinho.

No próximo final de semana, aproveitando o feriado do dia de Reis Celinho virá pra organizar, programar, deixar tudo no ponto! Farei um almocinho simples, pra nós dois. Vou comprar uma garrafa de vinho tinto. Preciso comemorar. E a caminho do chuveiro, paro em frente ao espelho e sorrio levemente: essa mulher no espelho será outra!

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