O imprestável (II)

Daniela Piroli Cabral
contato@danielapiroli.com.br

(continuação da parte I)

Da adolescência, passou incólume. Não teve conflitos nem rebeldias. Nenhuma necessidade de convivência em grupo nem impulsos de erotismo. Desta fase levou somente algumas marcas de espinha na face. 

Apesar de já ter desistido do filho, Maria nutria certa preocupação a respeito da sobrevivência dele após a morte da avó, já debilitada, e da sua própria morte.

O imprestável nada sabia das habilidades domésticas. Nunca conseguira abrir uma lata de milho ou descascar uma laranja. Não tinha amigos ou parentes próximos. Seus precários recursos linguísticos eram insuficientes para uma entrevista de emprego. Não tinha renda nenhuma.

Certa vez, a pedido de sua avó, André foi buscar pão na padaria da esquina, que era a distância mais longa que seu fôlego e seu ostracismo permitiam.

Lá dentro, deu de cara com uma figura interessante. Uma mulher. Uma bela mulher. Bronzeada, saia indiana longa, cabelos encaracolados presos por uma tiara colorida, bolsa rústica cruzando o corpo, sorriso aberto, dentes branquíssimos.

Ele percebeu cada detalhe dela com uma nitidez quase cegante. Os olhares se encontraram com certa reciprocidade e lhe deu vontade de se demorar um pouco mais naquele marrom. Ela sorriu expansivamente e disse:

Oi. – E estendeu a sua mão com seu cartão de visitas onde estava escrito “Quirologia” e seu número de telefone logo abaixo.

Ele respondeu no susto, pegando o cartão com certa apatia:

– Oi. – E, voltou-se para a saída, esquecendo o pão para trás.

Chegando em casa, olhou mais uma vez o cartão e, como se aquilo fosse uma banalidade, o atirou no lixo. E ainda teve que ouvir da avó o quanto era imprestável, pois voltara da padaria sem os malditos pães. 

O que dona Amélia não sabia é que André acabara de experimentar, por breves instantes, uma pequena abertura no portal de brilho e emoção que uma vida pode ter. Mas não. Não deu importância, não soube reconhecer, não tinha recursos para saber disso tudo.

Foi a última chance na vida que André teve de sentir seu olho brilhar. Ele voltou placidamente para sua rotina, pois não é preciso saber os segredos da quiromancia para prever o futuro daquele imprestável. Sim, ele estava fadado a uma existência sem afeto, sem sentido. Uma existência vazia. Uma vida desperdiçada.

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