Prazer, Maudsley

Henry Maudsley (1835-1918)
Guilherme Scarpellini
scarpellini.gui@gmail.com

Eu falava ao telefone enquanto observava pela janela nada acontecer. Não era prosa que falávamos. Era papo sério. Um desses chamados cabeludos do labor que normalmente são tratados nas mesas de escritório. Ocorre que a normalidade se cansou de nós – e de nossas extravagâncias. Deu-se a vez dos tempos estranhos de agora.

Passei a trabalhar em casa desde então. Vou cumprindo o pacto de distanciamento social assumido com sete bilhões de inimigos em potencial. Muitos deles, amáveis, inclusive: minha mãe, meu pai, meu cachorro. Eles, lá em Araxá. Eu, aqui. Nós? Só se for ao telefone.

E por falar em telefone, eu falava mesmo ao telefone, papo sério, quando, de repente, ouço um estouro lá fora. Finalmente algo acontecia. Um estouro de alegria com gritinhos estridentes e risadas tão fáceis como se os nossos problemas fossem uma “gripezinha”.

Eram três meninos moleques, no auge de suas quarentenas vadias, enclausurados no apartamento do prédio da frente. Eu olhava na hora certa. Ia começar uma partida de basquete.

Fizeram da varandinha minúscula uma quadra improvisada. Do saco de lixo, a cesta. E com pouco mais de meio metro de altura pra cada um, três gigantes estavam prontos para implodir o prédio. No céu deve haver campos verdes com macieiras, sombra e água fresca só para a mãe desses meninos.

Desliguei o telefone e gastei alguns minutos na janela. Ouvi ainda um vizinho dizer: “Tá foda”. Estava mesmo. Mas quem diria? Na era dos meios de comunicação instantânea, voltamos a interagir nas janelas. Elas são hoje o nosso melhor canal de televisão. Azar o meu, que não sou vizinho de Chico ou Caetano. Não seria muito esperar por uma canja na janela.

Mais do que isso, ir à janela tornou-se um ato cívico. Às oito e meia eu escolho a melhor roupa e vou até ela. É quando pedimos a saída do tresloucado que chamamos de presidente.

Fico sem a minha panela de fazer arroz – toda torta e amassada. Mas levo um pouco de prosa com a vizinhança. Ao final de mais um panelaço, nos despedimos uns dos outros: “Nos vemos amanhã às oito para o aplauso?”. No céu haverá campos ainda mais verdes só para os profissionais da saúde.

Quando cessam os aplausos eu fecho a janela. E assisto a filmes no escuro – um por noite de confinamento. Ontem assisti ao “O Poço”, do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia. Acabou de entrar no catálogo da Netflix e, será por que?, já está entre os mais vistos: é um filme sobre confinamento. Sinto-me melhor por não ser sádico sozinho.

Sadicamente, identifiquei-me com o protagonista, Goreng (Ivan Massagué). Ele se entrega ao isoamento para terminar de ler o “Dom Quixote”, de Cervantes. Mas acabou tendo de comer uma página do livro – calma, foi só um spoilerzinho.

Eu, do lado de cá do meu confinamento, terminei de ler “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Não engoli a última página, pelo contrário. Mandei emoldurá-la.

Nela se lê uma única frase solitária – e muito apropriada: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades. O melhor vem no rodapé: Henry Maudsley (1835-1918), psiquiatra inglês.

Prazer, Maudsley. Quero te apresentar o presidente.

Em cena de “O Poço” (“El Hoyo”, Espanha, 2019), o protagonista Goreng (Ivan Massagué) lê “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes (Divulgação/Facebook).

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