A Livraria e Mary Shelley já estão na Netflix

por Marcelo Seabra

Dois lançamentos na Netflix têm uma coisa em comum: são realizações de mulheres, sobre mulheres. Isso, além da qualidade. Já estão disponíveis A Livraria (The Bookshop, 2017) e Mary Shelley (2017), dramas de época com histórias bonitas sobre personagens fortes que fizeram seu próprio caminho, sem depender de maridos ou qualquer outro suporte masculino. Histórias bonitas, mas não necessariamente felizes, já que houve muita luta por parte delas.

Depois de uma rápida passagem pelos cinemas nacionais, trazido pela Cineart Filmes, A Livraria chega ao serviço de streaming e é uma ótima oportunidade para quem deixou passar da primeira vez. Escrito e dirigido por Isabel Coixet (do delicado Minha Vida Sem Mim, 2003), o longa é baseado num livro de Penelope Fitzgerald, escritora rapidamente homenageada nos segundos finais. No final dos anos 50, numa cidadezinha da costa inglesa, uma viúva (Emily Mortimer, de A Invenção de Hugo Cabret, 2011) se prepara para realizar um sonho: abrir uma livraria.

Em meio à abertura da loja e aos esforços de Florence para prestar o melhor serviço à comunidade, Fitzgerald e Coixet aproveitam para fazer críticas sociais e até políticas, além de contarem uma história interessante. Uma socialite desocupada (Patricia Clarkson, de Maze Runner: A Cura Mortal, 2018) inventa que um casarão antigo no meio da cidade deveria virar um centro cultural. É exatamente a casa que Florence comprou para morar e montar sua livraria. Casa que estava vaga há meses e não despertava interesse. Basta alguém tomar a frente para acender a intriga local.

Tanto Mortimer, como a educada e tolerante protagonista, como Clarkson, como sua antagonista arrogante, estão muito bem. Enquanto uma evita “coitadismos”, mantendo sempre uma postura digna e bondosa, a outra não cai no estereótipo fácil da megera, mantendo uma fachada de filantropa que pensa no bem-estar de todos. E, correndo por fora, chega o excepcional Bill Nighy (de Questão de Tempo, 2013), que vive um viúvo recluso que decide entrar na briga para reforçar o lado que julga correto. Um poço de ética, Mr. Brundish escancara a hipocrisia de seus pares, um bando de fofoqueiros que gostam de alimentar mentiras.

O usual diretor de fotografia de Coixet, Jean-Claude Larrieu, aproveita as paisagens do litoral inglês, contrastando a paz do mar sem ondas com a dureza das pedras da praia, a aparência de calmaria com a real aspereza que se revela aos poucos nos cidadãos. Com simplicidade, a diretora nos conduz pela intriga que cerca Florence, nos fazendo torcer por ela não por ser mulher, mas por seus valores e sua coragem. Só queremos entrar na cena e dizer algumas palavras de incentivo.

Outra mulher interessante, que defende com garra preceitos feministas, é Mary Shelley, interpretada com serenidade por Elle Fanning (de O Estranho Que Nós Amamos, 2017). A atriz, mesmo sem grandes arroubos, mostra que Mary não era uma mocinha convencional, daquelas que se resignam a seguir ordem dos homens. A falecida mãe era conhecida por ser uma feminista batalhadora e o pai (Stephen Dillane, de O Destino de Uma Nação, 2017) é um escritor e livreiro respeitado. Mary cresce num meio que favorece sua veia literária e desde sempre escreve aqui e ali.

Aos 16, a garota conhece o envolvente poeta Percy Shelley (Douglas Booth, de O Destino de Júpiter, 2015), e se apaixona, optando por um amor dentro dos padrões, acreditando que cada um possa fazer suas próprias escolhas. Com Shelley, Mary foge de casa e, juntos, eles desfrutam um estilo de vida luxuoso e sem preocupações. Isso, até que Shelley é deserdado pelo pai e passa aplicar golpes para manter as benesses. Fugir de credores passa a ser uma comum e, numa dessas escapadas, o casal vai parar na mansão de outro escritor bem de vida, Lorde Byron (Tom Sturridge, de Longe Deste Insensato Mundo, 2015).

É desse encontro que nasce um dos mais clássicos romances de terror: Frankenstein. É notória a aposta que é feita entre os presentes de que eles combateriam o tédio escrevendo, e ganharia a melhor história. O filme oferece uma visão do que teria acontecido, diferindo bem do que é mostrado em Gothic (1986), de Ken Russell, já que o foco é em Mary. A diretora Haifaa Al-Mansour, que escreveu o roteiro com Emma Jensen, é lembrada como a primeira cineasta da Arábia Saudita, tendo feito sua estreia com o elogiado O Sonho de Wadjda (2012).

Al-Mansour pela primeira vez conta essa história tirando o foco dos homens presentes (Shelley, Byron e o Dr. Polidori, vivido por Ben Hardy), valorizando Mary e sua irmã (Bel Powley, de Diário de Uma Adolescente, 2015). Dessa forma, entendemos melhor o que se passava na cabeça delas, que tinham qualidades, defeitos e paixões como qualquer um de nós. Mary, assim como a Florence de A Livraria, toma suas decisões e arca com as consequências. É ótimo ter a oportunidade tão cômoda, na Netflix, de conhecer essas duas obras feitas por mulheres num meio que não as valoriza como deveria.

Além de Fanning, Booth e Powley, o elenco traz Maisie Williams, de GoT

Sobre Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.
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